sexta-feira, 30 de julho de 2010

O Segredo de Eduardo...


Tudo começou como uma brincadeira entre amigos. Aliás, desde a adolescência levamos alguns projetos adiante depois de fazer as coisas sem planejar, sem interesses futuros, sem grandes intenções. Na verdade éramos cachorros grandes e mal intencionados, mas em um sentido que prefiro deixar que as pessoas imaginem por si só.

Aqui falo de uma banda de rock que começou com minha idéia maluca de musicar um pequeno poema que havia escrito no banheiro do escritório onde meu trabalho consistia apenas nas atribuições do famoso “office-boy”, entre broncas do chefe e cantadas idiotas na secretária. Eu sempre imaginei histórias loucas de amor, mas não sobre aquele sentimento piegas que vivemos na aborrescência e sim aquele em que ou terminava num conto de fadas maravilhoso ou numa tragédia grega com almas gêmeas que entregaram seus reinos por um amor incondicional e mancharam suas espadas com a cor escarlate da fatalidade. Encaixando minhas divagações anacrônicas com uma realidade análoga à descoberta da minha puberdade, preferia criar personagens por trás de um lirismo poético propriamente latino, que iam desde nossas metrópoles sujas passando até pelas escuras ruas das periferias brasilianas.

Voltemos ao caso da música. No dia em que escrevi o poema, eu estava no banheiro da repartição chorando por conta de uma discussão com a chefia. Claro que saí no prejuízo psicológico e moral depois de ouvir tantos adjetivos como “incompetente”, “burro”, “energúmeno” e “inútil”. Minha mágoa maior era ver através de uma fresta na porta, a garota mais linda do mundo que, com seus seios fartos e seus lábios carnudos e pecaminosos, cabisbaixa balançava a cabeça em sinal de reprovação.

O golpe de misericórdia foi quando, ao imaginar que eu seria consolado, descobri que, meia hora antes da implosão do meu mundo, a menina também passara pela mesma situação por minha causa, afinal, meu erro desestabilizou o trabalho de todos os demais e ficamos semanas a fio em clima de inimizade tentando consertar coisas já sem conserto. Até aí tudo bem, aquele era só mais um trabalho (eu poderia arrumar outro), eu era virgem (e tinha que comer alguém se não me desfaria na punheta) e ela era só a secretária (que se dizia virgem como eu).

Enquanto me recompunha no banheiro, iniciei um poema numa folha de papel higiênico pra terminar em casa. Era algo sobre como a vida pode ser injusta com pessoas que tentam dar o que tem de melhor da sua pureza. Sexta-feira, fim de expediente, tudo que eu era e pensava seria destruído antes de terminar o dia. De fato eu não havia notado que todos os outros já tinham debandado para seus lares e suas vidinhas medíocres. Abri a porta do banheiro e estranhei o silêncio quase macabro, ouvia apenas o relógio antigo que balançava seu pêndulo ao lado da máquina de bater o ponto diário. Ao longe também escutei cochichos e sussurros:

-- Pára Paulinho, não gosto dessas brincadeiras...

-- Pára você Ana, de fazer doce pra mim. Todo mundo sabe que você não é boa moça e sua virgindade é a fachada de um bordel inteiro... Agora vem aqui sua vadia... Vem... Boazinha, assim... Isso... Isso... Língua deliciosa...

Não pude crer no que via. A secretária engolia todo o membro do chefe da seção, sugava como uma profissional que já conhecia seu cliente. Ana lambia a cabeça, cuspia nela, acariciava, masturbava e ria um riso diabólico e sacana, bem diferente dos sorrisos angelicais quando me agradecia algum favor. Filha de uma puta, manipuladora! Paulo, nosso chefe, puxou-a pelos cabelos e a jogou na mesa com força. Ela adorava.

Ele era um troglodita, velho, careca, gordo, fétido e suas mãos rançosas apalparam-lhe o seio, as coxas, a boceta, as entranhas. Subiu-me à boca uma decepção nauseante de quem havia idealizado a mulher perfeita. De certo que aquela foi minha primeira lição moral e filosófica: não vemos o mundo como ele é, mas como nós somos. E meu mundo era permeado por violão, viagens à praia com meus pais, formatura do ensino médio, paqueras inocentes, expectativas e futilidades que, de tão superficiais, se foram na velocidade do proselitismo púbere que findava no que eu descobriria ser o início da maturidade fatalista da decepção. Eu não chegaria a ser um adulto sem bandeiras ou ideários, incólume, talvez “apenas mais um rapaz latino americano”...

Tomei decisões que foram as mais absurdas. Pedi demissão do emprego às vésperas do fim das aulas. Não fiz alarde, não xinguei ninguém, nem expliquei que a sujeira que nos atinge quando trabalhamos com “certos porcos” nãos nos une a eles, não nos torna parecidos e tão pouco alimenta com podridão qualquer candura que nos concerne e é propriamente enraizada em nossa dignidade. Anos depois eu descobriria a diferença entre ser livre em toda sua plenitude e mascarar a amplidão verdadeira com discursos morais, sexuais e sexistas.

Errei novamente ao tocar a campainha da casa de Janaína, uma antiga namorada que ainda não me saíra da sanidade. E lá estava ela, parada na porta, inerte, muda, apática como um cadáver. Engraçado como nos prestamos a fazer certos papelões. Minha “ex-namorada de portão” aproveitara a ausência dos pais e apaixonadamente entregou-se inteiramente a um garoto mais velho que sabia foder direitinho. Eu, pra variar, cortei o barato dos dois quando apareci na porta com um ramo de flores dos mais vagabundos e balbuciei palavras lindas e românticas entre “oi” e “fodeu a biela”. O cara ainda foi mais educado que ela e pegou as flores agradecendo e arrumando o pau dentro do short.

No dia do baile da escola não tive coragem de aparecer e fiquei na sacada de casa como uma paisagem desolada, bebericando meu primeiro uísque e arranhando os acordes de “See You On The Other Side” de Ozzy Osbourne. Minhas manhãs douradas estavam realmente acabando.


Foi nesse dia que tive o insight de terminar meu poema e musicá-lo. Jamais quis ser artista, cantor, compositor ou seguir carreira artística. Era apenas a idéia maluca de produzir um bom rock’n roll.

Duas semanas depois no fundo da garagem de casa tocávamos nossas primeiras músicas. Nunca fizemos cover de ninguém, apenas inventávamos histórias cantadas, saraus, solos, risadas, indizíveis subjetividades e fantásticas conversas informais sobre coisas e pessoas.

Minha música preferida era “o segredo”, composição minha e de Fernando que narrava a história de duas mulheres lésbicas perseguidas e julgadas pelo tribunal do santo ofício e pelo preconceito de uma época sombria.

Nosso grupo era formado por Fernando, Pablo, Billy, Marcelo e eu, Eduardo. Tocamos durante alguns poucos anos e cada um viveu um pouco da vida do outro. Contudo, como nada é eterno – é infinito enquanto dura – tomamos caminhos diferentes e a banda acabou. Fernando foi o que ficou mais tempo em contato, mesmo depois de casado. Pablo foi estudar no exterior, enquanto Billy foi para trabalhar e morreu um ano depois de ter voltado, vitimado por um câncer na garganta e na boca. Marcelo virou pesquisador científico das ciências sociais, se meteu com partidos políticos e desde então é difícil encontrá-lo em residência fixa. Fernando me ligava de vez em quando para avisar sobre festas e churrascos em sua casa. E eu passei a vida inteira em busca de sentido pra vida. Tornei-me jornalista criminalista e desde então trabalhei esporadicamente passando pela televisão, jornais e periódicos.

Durante minhas andanças pelo mundo, conheci inúmeras mulheres, de todo tipo: advogadas, promotoras, intérpretes, casadas, viúvas, vadias, recatadas, prostitutas e afins. Transei com quase todas elas sem paixão, sem interesse amoroso, apenas cópulas das mais ferozes. Porém, teve uma pequena, de olhos tristes, cabelos curtos, bom corpo e seios médios que fez uma fissura na minha máscara de ferro. Seu nome era Rosa, a professorinha de um de meus sobrinhos.

-- Isso... Assim... Seu puto! Vai, me fode gostoso, bem gostoso...

-- Sua puta! – um tapa na bunda, sem piedade.

-- Bate mesmo, adoro, adooooroooo!

Estávamos no chão do quarto. Enquanto eu a estocava e enterrava meu pau com toda força e ferocidade dentro de sua boceta molhada e viscosa, minha língua invadia-lhe a boca, os seios bicudos, meus dentes marcavam seu corpinho que de menina só mesmo a primeira impressão. Senti que ia gozar e parei totalmente os movimentos. Rosa me olhou com estranheza. Mas não permiti que ela indagasse qualquer coisa. Levei meu membro rígido à sua boca e sentenciei:

-- Chupa.

-- Mas...

-- Cala a boca e chupa.

-- Não quero.

-- Quer sim sua piranha, chupa logo senão...

-- Senão o quê?

Alguns minutos depois Rosa chorava no banheiro. Ela era casada e na minha cabeça ela tinha que se submeter aos meus caprichos e não eu aos dela. Gozei mais como desforra do que como prazer. Vale elencar que Rosa me lembrava de Janaína e daí o sentimento de amor e ódio se explicava pela maneira como eu a tratava. Cheguei ao ápice de roubar o porta-retrato da escrivaninha em que posava ela, o marido e um filho pequeno. Minha satisfação pessoal era ver o circo pegar fogo.

Depois de algum tempo, percebi que nossos encontros estavam cada vez mais freqüentes e nossas transas mais e mais duradouras. A paixão é o sexo, a carne, a essência do instinto humano. Por isso as paixões são avassaladoras, acesas por fogos violentos e que são na sua maioria efêmeras.

O amor não pode ser à primeira vista, porque é como um processo de osmose e quando percebemos já fazemos parte do outro, já somos o outro. Para mim, amar não consistia em encontrar a alma gêmea, a cara metade, porque afinal somos seres inteiros e não necessitamos que ninguém nos complete.

Casamento é muito mais um sentimento de posse, onde o objeto possuído pode ser moldado, do que de aceitação das coisas e das pessoas como elas são. Somos eternos coniventes de todas as ações ao qual fechamos os olhos nas primeiras entregas inter-relacionais para abri-los na comunhão matrimonial e perceber – consequentemente ou tardiamente – que certas coisas não mudam, nunca.

Por isso eu preferia as noitadas pelos bares a passar meus sábados vendo programas televisivos repetidos ou numa pizzaria com a família toda reunida. E não me perguntem se eu era ou sou feliz. Essa realmente eu não sei responder, deixo para Jacques Lacan e a busca pelo Grande Outro que antecede o sujeito.

Numa bela quarta-feira Rosa me liga.

-- Quero te ver hoje, na minha casa.

-- E amanhã?

-- Esquece. Tem que ser hoje.

-- Ta. – pela primeira vez eu engoli seco.

************

-- Devagar seu filho da puta, mais devagar... Assim mesmo, com carinho... Filho da putaaaaa!

-- Calma... Devagarzinho, assim... Hummm... Cuzinho apertado, delicioso!

Meu pau latejava dentro dela. Fiquei a imaginar se eu era o primeiro a deflorar seu ânus. Não precisava da resposta, apenas me excitava a possibilidade de ser o privilegiado.


***********

-- Que noite hein amor... – eu balbuciei enquanto terminava o cigarro na varanda.

-- Amor? Ta maluco?

-- Desculpa... Ato falho... – respondi sem graça.

-- Relaxa Edward.

-- Nossa! Você anda tão sinistra esses dias. Odeio quando traduz meu nome para o inglês... Afinal, aconteceu alguma coisa?

-- És um tolo.

-- E porque?

-- Olhe ao redor bobinho e me diga se há algo errado.

Notei que o quarto parecia mais vazio. Andei pela casa e dei por falta de todas as coisas do marido. Retornei à alcova, agora parecida a uma mortalha. Senti calafrios.

-- Ele te abandonou? – perguntei meio emocionado.

-- Não. Eu o mandei embora.

-- E porque você fez isso?

-- Estava bem cansada dele.

-- Seu filho?

-- Deixei na minha mãe até resolver as coisas.

-- Sinto muito.

-- Não sente não.

-- Não me quer mais Rosa? O que eu te fiz?

-- Você me fez ver que os homens não prestam. Sempre me tratou mal, armava pra mim, me humilhava, era indiferente com meus sentimentos. Notei que meu marido e Andreas tinham as mesmas qualidades que as suas. E isso não foi um elogio.

-- Quem é Andreas?

-- Ué, você se acha mesmo né? Pensou que era exclusivo?

-- Pensei que...

-- É, você pensou, se é que podemos dizer que você pensa alguma coisa. Mas se pensou, então era tarde pra isso e gostar de você era mentir pra mim mesma e essa hipocrisia entre a gente estava ficando insustentável. Andreas me deflorou há algumas semanas e foi muito bom, mas o dispensei semana retrasada, precisava renovar meu estoque de homens ruins. Meu marido tinha duas amantes, é justo. Sua esposinha se tornara uma puta pra buscar alegria e prazer nas máculas e braços de outrem, que pra mim eram virtudes no meu colo. Descobri que minha relação com qualquer um de vocês era prisão merecida e não liberdade condicional. Mandei todos embora da minha vida. Percebe o paradoxo desse jogo da sedução? Estou prestes a te dizer “nunca mais” e algo me diz que não vou me arrepender...

-- Rosinha...

-- Pode chorar, não se incomode, tenho lenço se precisar. Você supera isso...

-- Vagabunda! Quem é Andreas?

-- Não importa, não mais. Pegue suas coisas e, por favor, dê o fora.

-- Sua...

Quando ousei levantar-lhe a mão ela me espirrou spray de pimenta e me colocou pra fora quase a pontapés. Nunca mais tive notícias de Rosa.

Recuperado da queda, recebi meses depois a estranha ligação de Marcelo me convidando a um jantar importante.

-- Quero reunir a galera pra gente voltar a tocar.

-- Você soube do Billy né?

-- Soube sim, mas quando ele veio a óbito eu me encontrava em Brasília.

-- Eu posso tocar guitarra e ficar nos vocais, mesmo sendo só um barítono.

-- Deixa disso você canta bem...

-- Vem cá, me tira uma dúvida... Qual é o teu interesse em reunir a galera de novo?

-- Bom... Recentemente perdi um ente muito querido e ele me deixou uma carta, escrita há mais de um ano e meio.

-- E o que a carta dizia?

-- A parte mais importante fala que o homem realmente valoroso e bem-aventurado não é aquele que sempre faz novos amigos, mas aquele que nunca se esquece dos velhos. Daí, percebi o quanto perdi meu tempo engajado na política enquanto as coisas mais importantes da minha vida definhavam. – pela primeira vez eu via Marcelo chorar como uma criança.

A velha guarda havia voltado à atividade um mês depois. Eu inexperiente na música, mas doutor em tirocínios pessoais. O restante da turma veio trazendo suas bagagens culturais e de maturidade pro grupo. Não éramos apenas amadores, mas profissionais da vontade e da fidedignidade. Propus que abríssemos nossos ensaios com Pearl Jam. "Alive" era meu combustível para entender e tentar sobreviver ao cotidiano.

Num certo dia estava fazendo uma faxina na casa de minha mãe e descobri no sótão, no fundo de um baú antigo o poema “o segredo”. A folha agora parecia um pergaminho queimado pelo tempo. Continuei a fuçar as coisas, agora sorrindo e mais animado com a brincadeira de caça ao tesouro.

De repente vi um bilhete dobrado, escrito num papel de carta. A letra e as iniciais no rodapé denunciavam: era de Janaína. Não tinha data, mas dizia em poucas palavras: “Edu, desculpa por tudo que te fiz. Não estou mais com aquele cara, mas somos amigos e ele me incentivou a te procurar por causa das flores que você me mandou naquele dia. Hoje entendo o quanto sua atitude foi nobre diante da minha infantilidade. Espero que um dia você me perdoe, sinto sua falta. Quando quiser, me procure – Beijos JPA (Janaína Paiva de Andrade)”. Corri até a cozinha onde minha mãe preparava o almoço e perguntei-lhe sobre a carta.

-- Ah meu filho eu não me lembro...

-- Tenta mãe... Por mim, eu preciso saber...

-- Deixa eu ver isso... – dona Antônia secou as mãos num pano de prato e me tomou a carta bruscamente.

-- Então? – Perguntei depois de cinco minutos de um silêncio terrível.

-- Essa carta foi colocada debaixo da porta quando estávamos na praia no final daquele ano em que você se formou e não quis ir ao baile. Eu tentei te mostrar duas vezes e você nem ligou, ficou irritado, aí eu guardei no baú pra te entregar depois, mas no fim acabei esquecendo...

-- Porra mãe!

-- Desculpa Dudu... Essas coisas acontecem, de repente essa menina nem era pra você mesmo...

Sentei na cama do meu antigo quarto, que agora era de hospedagem dos netos de minha pobre mãe, e chorei amargamente. Não somente pela oportunidade perdida, mas pela pessoa ruim que fui todos esses anos. Atitudes, palavras irreversíveis. Se um dia pudesse me redimir pelo menos com Rosa.

Quando toquei a campainha, segurava a carta ansiosamente e tremia dos pés à cabeça. Uma moça linda de cabelos louros e de meia idade me atendeu no portão. Demorei a perceber quem era. Ela então sorriu pra mim, se aproximou e abraçando-me, tocou meus lábios com os seus. Era um beijo atrasado e bonito. Eu não havia errado o endereço, era a solteirona Janaína.

-- Eu esperei muito por esse dia. – ela disse-me antes de entrarmos.

-- Por que me beijou assim tão de repente, tão do nada?

-- Riscos. Quem ama corre todos os riscos. É a primeira aceitação Edu.

-- Eu sei, Jana, e como sei... Posso te contar “meus segredos”?

***Link das músicas que me inspiraram, abaixo***

http://www.youtube.com/watch?v=eb5S_-USqOs (Ozzy)

http://www.youtube.com/watch?v=tPIwsAW2Q0w&feature=related (Pearl Jam - Alive)

http://www.youtube.com/watch?v=6X8Ic86Hx3w&feature=related (Pearl Jam - Black).