quarta-feira, 19 de setembro de 2012

SOMBRA NO CREPÚSCULO...


Melissa estava cansada do silêncio. Era hediondo, perturbador e profundo. Um silêncio que vinha do lugar mais remoto da terra: a alma humana. Mas não era só isso, ela estava num crescente estado de pânico. Noites mal dormidas. E aquela quietude abismal que a destruía. Nem ao longe, sequer um único som retumbava. O som de um carro, vozes de estranhos, passos de transeuntes, nada ressoava na escuridão que a violentava. Melissa apenas podia sentir a garganta cada vez mais seca.

A madrugada avançava e Mel ora fitava o teto, ora rolava na cama. Levantou-se finalmente. Abriu a gaveta e com ajuda de seu abajur velho ela folheou indiscriminadamente bulas e receitas médicas em busca de algo que lhe devolvesse o sono ou a reconfortasse das lágrimas e do infortúnio. Entre os papéis estavam todos os seus exames de rotina; cardiovascular, cardiorrespiratório, eletrocardiograma, eletro-encefalograma, audiométricos, entre tantos outros. Tudo estava em perfeita simetria. Para melissa não existia nenhum distúrbio que explicasse aquela sensação de um frio intenso capaz de rasgar seu corpo ao meio. Não havia nenhum mistério além de uma certeza iminente.

O que mais a irritava eram os remédios psicotrópicos receitados pelo seu psiquiatra. Ele dizia que o grande mal daquela pequena era o mesmo mal que assola a humanidade: a insônia. Mel odiava-o com todas as suas forças, porque sabia que toda vez que ficava sozinha com ele a conversa ironicamente se inclinava aos apetites sexuais daquele senil. Suas mãos rançosas e ásperas lhe davam náuseas. Melissa discordava da loucura em que se via mergulhada. Diagnóstico clínico: esquizofrenia. O esfalfamento a engolia e o dia-a-dia fazia aumentar sua austeridade e tornava sua polidez cada vez mais diminuta.

Melissa abriu a geladeira. Sorveu um litro de água em longos goles. Nenhum efeito. A sede aumentou. Ela abriu o freezer e viu uma garrafa de uísque comprada há meses. Ainda estava lacrada. Arrancou ferozmente o lacre com tampa e tudo. Bebeu quase meia garrafa num único gole. Nada. Outro trago de uísque. Mais longo, amargo, pungente. Sua cabeça girou e ela caiu sobre a cama enquanto ouvia a garrafa se despedaçar no chão. "Vá se foder" ela gritou para si mesma. "Sua burra". 

Melissa sabia que aquele silêncio apavorante não era habitual, não fazia parte da noite, nem da calmaria da cidade quando dorme. O silêncio era a voz do demônio espreitando a alma, oferecendo a ela o evento mais deprimente da vida: o espetáculo da morte.

Ela tinha certeza mais do que ninguém sobre o vazio que rondava seus dias. Pessoas cochichavam atrás das portas, esquivavam-se de conversas íntimas e abraçavam-na como se fosse o último adeus. O tempo era cinzento e pesado como chumbo e dentro dela o amargor consumia seu espírito. Sua cabeça era uma tempestade.

Pesarosamente Mel caminhou até o lavabo desviando dos cacos de vidro. Olhou-se no espelho. A palidez não mais a incomodava, só o maldito silêncio. Ela então lavou as mãos e o rosto, abriu o armário do banheiro e pegou dois comprimidos. Um analgésico e outro antidepressivo. Tomou ambos de uma vez. Voltou a olhar-se no espelho. Procurou em vão algum fio de cabelo que lhe restasse da quimioterapia. Porém, Mel nem via mais seu rosto, apenas o de um esqueleto com pedaços de pele putrefata. Suas entranhas estavam abertas e suas vísceras dependuradas. Melissa coçou os olhos. As entranhas doíam e continuavam a escapar para fora do ventre. Parecia real. Ela não estava louca. A visão do noivo indo embora com outra mulher lhe atormentava tanto quanto as ligações em vão para amigos que desapareceram. Sua vida tinha sido desperdiçada. 

Ela nada fez senão contemplar sua hora. Desistiu de lutar e se entregou completamente à fatalidade. Suas roupas estavam ensopadas de sangue coagulado. Mas era belo saber que somente o som do vento soturno poderia acalentar seu desassossego. Melissa soltou a faca e virou-se abruptamente abraçando sem medo quem tanto a esperava atrás das sombras do crepúsculo. Seus pulsos adormeceram. Seu corpo e sua mente saíram de sintonia. Restou o sorriso e o lamento.

“Enfim sós, meu amor”. Era o sussurro que enfim rompia o silêncio e o drama. “Venha, vamos dançar nossa valsa.” Insistiu a morte esticando seus braços esqueléticos para melissa. E dançaram engalfinhados em direção ao infinito. No meio do quarto um corpo tombou sem vida. Ela finalmente estava livre.