sexta-feira, 15 de maio de 2009

O DIVÓRCIO.


Eu sempre tive meus costumes. Podiam ser os mais fúteis, agradáveis ou estranhos. Não importa. Não mais. Acostumamos a ser quem não somos, a gostar de coisas que em geral não gostamos, de fazer coisas pelos outros e não por nós mesmos, de viver vidas que não são nossas. Uma vez minha mãe me disse que pessoas fúteis – normalmente – precisam de grandes doses de prazer para curtos momentos de felicidade. E eu no fundo sabia que aquelas eram as melhores palavras da minha vida. Eu não precisava de grandes goles de sonhos para acreditar numa realidade plenamente possível. Bastava um pouco de risadas, beijos, amores, amigos e logo eu entrava em sintonia com a amplidão. Dizia a grande poetisa Cecília Meireles que a “liberdade é uma palavra que todo sonho humano alimenta.”

Certo. O que estava me assaltando não era a saudade da minha mãe e suas paráfrases, nem o lirismo docemente extemporâneo de minha musa e seu apologético espírito vitorioso do simbolismo, apenas uma dor de cabeça infernal numa tarde de domingo. Levantei nu pra pegar uma aspirina no armário do banheiro. Cássia estava deitada, com seu sexo à mostra, tínhamos acabado de fazer amor, amor numa terra intransponível para os amores. Há dias planejávamos fazer sexo, burlar o cotidiano pelo simples prazer de nos entregar.

E assim, nos amamos na cama, sem dizer uma palavra. Nossas bocas uniram-se para consumação do holocausto. Foi uma colisão entre duas galáxias próximas e distantes paradoxalmente. Sua língua era severa, sem gosto, inanimada, intraduzível. Queria prazer desmedido sem que qualquer diálogo estragasse tudo. Depois de tantos anos ela tinha aprendido a me ganhar, me possuir, me despejar quando não mais quisesse um homem sem apegos.

Eu sabia os motivos dela. Poderíamos ter nos casado na juventude. Todavia, não nos conhecíamos, não éramos amigos, mas de alguma forma o destino sabia onde desaguar sua culpa. Cássia casou-se com um gerente de banco asnático, sem a menor pinta de galã da novela das oito. Nunca tive coragem de perguntar o que ela tinha visto nele. E mesmo que ela tirasse minha dúvida, tenho certeza que alguns de seus dizeres poderiam estragar meu almoço pela quaresma inteira. Alguns aborrecimentos são evitáveis. Principalmente aqueles que nos referem. E ferem.

Nas minhas andanças pela vida também fui grosseiro, peralta, meticuloso, infantil e isso gerou-me dois filhos lindos que eu quase nunca vejo. Eu sou um pai ausente e não preciso que me apontem. Engraçado que adoramos ter ex-sogras e odiamos ter ex-mulheres. Uma contradição, até por que tenho birra por palavras que começam com “ex”. Cássia não era uma ex, nem jamais seria algo perto dessa definição, ela era uma cliente corpóreo-sinestésica, pois tinha facilidade de remexer-se em cima de mim. Ponto final.

Mas, apesar de trilhar caminhos tortuosos desde a epigenesis da puberdade, conheci pessoas que avassalaram meus paradigmas e bagunçaram durante um tempo minha sanidade. Conheci mundos, pessoas, fundos, lugares, sensações, sentimentos, dores. Mas o grande dissabor da vida é querer só se embevecer daquilo que é doce, ignorando a necessidade de um amargo que equilibre.

Olhei no espelho as marcas da linha de expressão. Homens não olham essas coisas, embora, no meu caso não tivesse como não enxergar as rugas que ganhavam o tamanho do oceano atlântico. Sentei na privada e percebi que meu pênis estava duro. Ele queria voltar pro quarto e pedir terceiro tempo no futebol da cópula. Dependia de Cássia, do ânimo oportuno, do estado da nossa psique.

Liguei o chuveiro e tomei um banho longo, demorado, emergencial, algoz, inconcebível. Sequei-me com uma toalha azul anil. Detesto usar toalhas que não sejam brancas. É como se um médico atendesse de preto, não faz sentido, não para certos conceitos que aprendi na infância. Costumes, como eu havia dito antes, meros costumes da educação de casa. Acariciei meu sexo, toquei-o, fiz vibrar os desejos selvagens. Conversei comigo mesmo a respeito da moralidade, do que era, do que representava. Pudor e moral são palavras que assustam caras como eu. Adoro sacanagem, sei que é errado, mas quando se acostuma, vira vício e nada mais passa pelo crivo da consciência.

Depois de uma boa reflexão, olhei o relógio e era hora de fugir. Coloquei a cueca samba-canção, vesti uma camisa e fui pro quarto. Cássia estava acordada assistindo televisão. Parecia mergulhada nas suas idiotices cotidianas. Passei por ela e peguei o resto das minhas roupas no chão ao lado da cômoda. Olhei para a tela da TV pra ver o que a hipnotizava a ponto de ignorar minha presença como se eu fosse um ser espectral. “Como enlouquecer seu homem na cama”. Pronto, fiquei perturbado. “Técnicas de levá-lo ao paraíso e a ir também”. Ok, acabou com o meu dia. O riso da apresentadora me irritou. Será que Cássia queria enlouquecer seu marido e colocar uma pedra no que vivemos? Bobagem. Será que ela estava me amando finalmente e queria me dar o milagre do orgasmo múltiplo? Piada, certamente, piada de mau gosto. Pegue suas coisas e suma, mulheres como Cássia não sabem o que é amor. Já falamos de amor algumas vezes. Que hipocrisia, vocês fizeram dele um deboche. Ora pipocas!

Quando me despedi ela me deu um beijo longo e molhado. Desfitou-me e voltou a assistir. Achei o cúmulo. Em Cássia, os sentimentos eram fagulhas minúsculas, microscópicas, frações de segundo incompreensíveis. A maneira como seus olhos e seus lábios – silenciosamente – falavam comigo era, para as grandes paixões, inofensiva. Eu, pelo contrário, estava esperando um motim de milhões de megatons. E recebia apenas um estalinho besta de um beijo mais besta ainda.

O amor é um fantasma que um dia se materializa, até ficar real como uma estaca. Não, acho impossível, depois de tanto tempo... O farol! A caminho de casa quase colido com outro carro. O cara buzina, me xinga e some na via expressa da Marginal Tietê. Só dá tempo de gesticular um “foi mal”. É, foi mal mesmo. Mais uma vez meus pensamentos têm me castigado, como as chibatadas e os estigmas existenciais dos últimos meses. Certas coisas deveriam ser indizíveis para um cara de meia idade, confuso e solitário como eu. Uma das conjecturas concludentes é a de que dentro de mim existem duas feras que brigam entre si pelo deglute de um irrisório pedaço de carne e sem chegar a um consenso.

Esqueçamos isso por um tempo. Quero falar de Elisabeth, a secretária do meu ex-patrão. Essa é realmente uma puta. Nunca conheci mulher mais ardilosa. Nosso último chefe era jovial, bonito, de boa índole, seminarista em potencial (é, também me causou espanto), com uma inteligência inacessível. Acho que foi o único que ela não seduziu. Beth tinha doze anos de empresa, conheceu todos os executivos e suas respectivas alcovas. Ela não conhecia a profundidade de certos acontecimentos, mas era arguta na percepção do desenrolar das tramas corporativas. Meus amigos, eu sempre acreditei que a terceira grande guerra começaria dentro do mundo das corporações, sindicatos, das incontáveis repartições.

Elisabeth me chamou em sua sala no fim do expediente, desejando maiores explanações sobre um memorando. Era uma calorenta sexta-feira de verão. Também véspera de ano novo. Eu queria mais era que o memorando se danasse, minha vontade era de rasgar a gravata, encher a cara no primeiro botequim e passar os próximos dias me embolando nas noitadas com qualquer rapariga que quisesse. Mas oh! Maldito memorando que me caluniava a idéia.

Quando entrei na sala, Elisabeth pediu que eu encostasse a porta e passasse a chave. Pela primeira vez fiquei com medo de uma mulher (segunda, na verdade, a primeira foi quando minha mãe me esperou no portão depois da reclamação de um vizinho sobre umas janelas quebradas com uma bola). Ela estava linda, com seus cachos dourados e sua boca brilhosa de um batom incandescente. Beth beirava os quarenta anos e continuava belíssima. Ao me aproximar da mesa percebi que ela estava abrindo a blusa. Olhei para trás. Virei. Esfreguei os olhos. Era uma tentação irresoluta, em cinco minutos Beth estava nua à minha frente e abrindo meu zíper. Senti sua língua invadindo minha boca e suas mãos dentro da minha calça. Não era novela, nem filme, nem livro de romance. Eu estava me dando bem, recebendo uma promoçãozinha naquele emprego imbecil.

Na primeira investida - em que me precipitei para o meio de suas coxas - ela gemeu pedindo mais, com mais força. Cada estocada me lembrava das penosas horas extras nos fins de semana. Cada salivação minha em seus lábios era o direito pago por cada ofício recusado. As cadências das minhas mãos – entre se apoiar na mesa e sentir os seios fartos de Beth – perpetuavam a vingança por cada dia miserável naquele cubículo abafado. Meus dias tomariam um gosto doce depois de alguns anos naquela pocilga. Desforrei com tudo que pude, numa satisfação pessoal inenarrável. Quando ejaculei, um pouco derramou entre suas pernas grossas. Não pude ver, apenas senti o jato quente, escorrendo, pois minha cabeça estava enterrada no meio das suas pomposas glândulas mamárias.

E desde então ficávamos a sós, primeiro às sextas e depois em qualquer dia da semana. Aprendi tudo sobre o mundo do capital, as especulações, o dinheiro, as podridões dos barões empresariais. Ela me contava tudo, sem ocultar qualquer detalhe.

Graças a Beth eu finalmente subi de cargo e entendi porque a esmagadora maioria dos funcionários viviam imersos em problemas emocionais e no estresse do dia-a-dia sem perspectiva do futuro. Contudo, eu estava imune, intocável, protegido. E tinha ao meu lado a mulher mais deliciosa do mundo, do meu mundinho particular.

Por que não nos casamos? Vejamos. Depois de um tempo percebi que além de mim, quando ela queria alguma coisa de alguém era só conseguir através da sexualidade. É nela que as pessoas ainda versam, se dobram e se corrompem. Elisabeth tinha inúmeros homens (paus) à disposição e eu era só um estepe. Factualmente, “O Lobo da Estepe” de Hermann Hesse e ela nem tinha se dado conta da analogia nessas entrelinhas. Comecei a me sentir incomodado pela falta de exclusividade, pelos bolos que tomei e não foram poucos. E mais, a maior desgraça de um machista é não ter noção de onde está sua fêmea, sua presa, sua frágil escrava. Elisabeth era esperta e nunca me deixou entrar de fato em sua vida. O sexismo imperava na estranha relação.

Acabei dando-lhe um duro golpe baixo, pedindo-a em casamento para fins sensualmente lucrativos. Entretanto, para tal, consegui algumas de suas fotos com um alto executivo. Ela nem pestanejou, aceitou prontamente depois de chorar por horas trancada no banheiro do restaurante. Eu estava impassível e fiz minhas exigências. A chantagem era por uma boa causa, afinal, pretendia tirá-la da devassidão e do vazio que envenenava seu ego.

Na semana em que íamos nos casar surgiu o dilema de que a vagabunda estava saindo com um antigo chefe. Desmanchei nosso trato e mandei a foto para todos os e-mails da empresa, de todos os funcionários, diretores, executivos, presidentes, todos, sem exceção. Dias depois era uma febre, até o tiozinho da barraca de milho queria tirar uma casquinha quando chegou uma fotocópia em suas mãos. Elisabeth foi demitida e eu também. Óbvio. Nunca mais nos falamos e como não havia nenhuma forma de incriminação contra a minha pessoa, eu saí ileso, aliás, quase ileso.

Meses depois consegui arrumar emprego na concorrência, pela simples propagação da notícia das fotos que girou o planeta. Eu era um herói e não sabia. No quarto dia no novo empreendimento de trabalho esbarrei no corredor adivinham com quem? Ela mesmo. Elisabeth. Quase fui tragado pelo pavor daquele olhar de cólera. Mas, calmamente, voltei para minha sala e pedi um café. Agora eu era o poderoso chefão. Beth e eu transávamos toda sexta-feira como fazíamos antes. E o casamento? Foi pro vinagre. Nosso lance era só sexo mesmo.

Jaqueline foi outra paixão rápida de férias. Daquelas que não sobem a serra, depois de dias tomando sol, banho de mar e água de coco. No último dia mergulhamos juntos, nus, afastados da bagunça dos praieiros. Ela pulava no meu colo como uma cowgirl e sabia cavalgar sobre meu tesão. Minhas costas doíam quando a pressão da água e os movimentos me jogavam contra o muro de pedras. Jaqueline tinha seios pequenos e os bicos fininhos. Chupei tanto que quase tive que inflá-los de novo (o que não seria uma má idéia). Minha língua invadiu também a vulva, o clitóris, os lábios vaginais e toda sua anatomia de menina, de meninice. Foi muito bom. Quando a viagem acabou, também findou “o sonho de uma noite de verão” sem os seres élficos e os deuses mitológicos. E a vida seguiu furtiva.

A pequena me ligou algumas vezes fora de temporada. Marcamos e desmarcamos encontros. Transamos duas esporádicas vezes e frequentamos baladas. Ela era mais nova e seus amigos não compactuavam com idéias que me seduziam. Descobri uma chata de galocha, pegajosa e ciumenta. Odiava quando eu maldizia sobre seus amigos e nunca me defendia nos escárnios deles. O único que me deixava alegre era um cara – da minha idade – que dividia o mesmo pensamento sobre as novas adolescências. Embora Jaque e eu termos nos entendido bem no sexo, não tivemos nenhuma afinidade posterior o suficiente para nos unir em matrimônio e finalmente – depois de idas e vindas – rompemos.

Rolaram muitos outros flertes em minha vida. Alguns importantes, outros nem tanto, mas a sensação que se impregnou em mim foi a de que vivi todos os momentos de forma plena e intensa. Lembro-me de uma garota que transei no (antigo) teleférico do playcenter em São Paulo numa das "noites de terror". Foi incrível, ela era de um colégio interno de freiras, uma confraria, eu acho. Uma safada de mão cheia. Sabem o nome dela? Pois eu não sei, apesar de me recordar que, da maneira como suas amigas a chamavam, sua flexão nominativa parecia a de uma filósofa grega. Daí talvez o motivo d’eu não conseguir guardar “sua graça”. Pesquisem sobre o berço do pensamento filosófico, saberão do que estou falando.

Voltemos para o histórico de Cássia, de como viemos a nos esbarrar através da tênue linha do destino. Não sou adepto da moralidade exacerbada e também não me enquadro no pedantismo dos maus princípios. Em suma: fico entre a cruz e a espada, segurando a minha lata de cerveja reflexivo.

Quando saí tarde naquela quinta-feira, havia sido por causa de mais uma trepada corriqueira com Elisabeth. Sexo sempre é bom, só que minha secretária já estava cansando minha libido. E eu estava disposto a dispensar seus serviços. Não iria mandá-la embora e sim trocá-la de setor. Daí para escapulir da megera sem magoá-la seria fácil, muito fácil.

Enquanto trancava o portão do estacionamento, virei meu pulso e dei uma olhadela no relógio. Já passava da meia noite. Beth havia tomado um táxi porque tinha pressa. Antes de entrar no carro, observei no fim da rua um bar muito frequentado aos finais de semana. Desci a pé e fui beber meu chopp rotineiro antes de ir. Pedi uns petiscos de camarão e sentei numa mesa perto da entrada do boteco.

Cássia carregava uma jarra de vinho quando passou por mim e tropeçou, caindo. Levantei de súbito. Porra, justo na camisa nova! Eu havia ficado bravo, realmente bravo. E mais irritado fiquei quando ela ainda retrucou que a culpa era minha. Discutimos feio. Deu até polícia. Na delegacia descobri que Cássia era mulher de um ex-funcionário que eu havia demitido por insubordinação e rendimento improdutivo, e também que o sujeito ao sair do emprego acabou tornando-se gerente de um banco promissor. Justamente o banco que financiava os projetos da empresa que eu administrava. Passou a tornar-se comum nossos encontros nas festas de fim de ano e comemorações dos executivos. O incidente da camisa acabou virando apenas um evento episódico e tempos depois foi esquecido. Cássia, em contrapartida, continuava a alimentar por mim um ódio gratuito e infundado. Até o dia em que ficamos a sós depois de uma reunião no salão nobre da prefeitura. Trocamos experiências de vida parecidas e as deliciosas coincidências foram eclodindo. Um ano depois já éramos amigos íntimos, íntimos demais.

Alheios aos perigos sociais e profissionais que espreitavam, nós passamos a nos encontrar para os sexos descompromissados. Durante um longo período isso foi bom. Só que num certo dia deixei escapar – entre uma estocada e outra – que a amava. A reação dela foi calar-se e daí em diante nossas relações foram ficando cada vez mais inumanas, taciturnas e mecânicas. Descobri sobre a fraqueza de um homem numa incomensurável terra de gigantes: a interpessoalidade.

Cheguei ao prédio pela noite, depois do beijo congelado de Cássia naquele domingo. Gelado pra você seu trouxa, embaixo dela estava quentinho. Guardei o carro na garagem e esperei em eternos minutos o elevador. Eu odiava imaginar que depois de anos a fio juntos nossos encontros eram gotas fervorosas num oceano de emoções gélidas. Acredite seu tolo, essa é sua vida, a que você escolheu e ela não é sua esposa, pertence ao colo de outrem. Os castigos que minha mente impunha eram paulatinamente dolorosos na solidão. Dolorosos? Acostume-se ao sabor da vilania. Entrei no apartamento lúgubre, vazio e respirei a melancolia da rejeição. Tirei do bolso a aliança que havia comprado e a repousei calmamente sob a mesa da cozinha. Perdedor! Foi muito triste saber que Cássia não iria mais se divorciar pra ficar comigo.