segunda-feira, 19 de dezembro de 2011



ANTECIPANDO OS VOTOS DE ANO NOVO: 

Resposta à carta de uma amiga


Esta semana encontrei em casa uma correspondência perdida desde os primeiros dias de 2011. Estava ali, lacrada, intocável e virgem, mas irredutivelmente querendo me dizer alguma coisa protelada – talvez acidentalmente – durante onze meses. Pensei em esperar, pacientemente, até ela aniversariar seu primeiro ano. Daí eu faria um bolo e cantaria “parabéns pra você...” Contudo, deixando de lado o mau gosto da piada, além de não ter apreço por rituais inúteis, eu também gostaria de saber quem era o remetente que infelizmente ficou quase um ano sem resposta. 

Abri. Olhei, respirei fundo e reli com calma: feliz ano novo. Que o ano que agora nos invade, seja repleto de alegrias, prosperidade e esperança. Beijos da sua amiga fulana de tal. Bem, de esperança e sonhos nos enchemos em todos os réveillons, pelo menos assim tem sido nos meus últimos trinta anos. Tudo que peço depende da prodigalidade das decisões que tomo e por isso mesmo só faço pedidos pra não quebrar o protocolo, o resto é fruto da minha própria responsabilidade, de como executo as minhas ações. 

Ler atrasadamente estas aspirações, a mim endereçadas, deixou-me num envoltório de júbilo. Já que embora eu não soubesse que durante o ano perdurou de outrem uma vontade inequívoca de dias que me impelissem ao belo, vivi intensamente cada peleja cotidiana. Talvez eu não tenha sido a melhor pessoa do mundo, afinal, posso ter recusado qualquer devida importância à ascensão da mulher na política nacional e ao papel do feminismo, ou sequer me esforcei para sentir o perfume das flores revolucionárias da primavera árabe, nem insisti em refletir sobre a fragilidade mundial e a decenal fissura – hoje abismo – do imperialismo, os tsunamis e as chuvas sob nossas cabeças, a morte emblemática de um inimigo singular contra o ocidente, o casamento da realeza britânica; não meus caros, eu não fiz nada disso – nem de longe. Apenas contemplei uma flor que nascia no asfalto, a menina sem pátria que brincava venturosa embaixo do esguicho do chafariz, chorei o descaso e a miséria, fiquei desgostoso da política adúltera e injustificadamente corrupta deste país, entristeci-me das destemperanças e da falta de calma do intempestivo. Em contrapartida eu sorri e sorri muito, gargalhei até virar às avessas, tirei sarro das tragédias – ninguém é de ferro – e colhi delas as experiências mais fecundas. O ano de 2011 que se esvai, posso afirmar: foi surpreendentemente um dos mais excitantes. 

E eis aqui a resposta atrasadíssima à minha querida amiga: “feliz ano velho colega. Pois este ano, que da mácula à quimera gastou desapiedado o seu ineditismo ao longo dos dias, realmente foi próspero, alegre e esperançoso como você previu e muito mais adjetivado com definições boas e razoáveis – alheias ao que eu desejei de fato. Provavelmente responderei à sua nova missiva de boas festas no ano que vem, mas quando este já estiver perto do fim.” Como disse antes, não gosto de rituais. Mas este de “esquecer” será uma exceção. Feliz 2012!

sábado, 10 de dezembro de 2011

AMIGOS TRANSANDO PRA VALER

QUANDO O NÃO-AMOR ACONTECE.




Por um momento a idéia parecia perfeita. Transar com minha melhor amiga. Melhor amiga? Sem essa, homens não tem amigas, tem contatos e oportunidades. Somos eternos oportunistas. Sofrem os tolos que se entregam – em sua totalidade – a tais tipos de amizade. Substitua a palavra “amor” pela palavra “tesão” nas intenções com uma amiga e verá o quanto é bom quando em certas épocas da vida não se precisa amar totalmente para se ter um pouco de prazer. Em algumas situações o apego é a entropia do afeto, é desperdício de tempo na efemeridade da cobiça. Não que eu esteja sendo machista (estou sim, eu sei), mas homens, verdadeiros machos alfa não têm amizade com o sexo oposto. De forma nenhuma, não mesmo, ainda que sejam as “coleguices” mais improváveis. Contudo, a proximidade que exercíamos do mesmo modo e no mesmo lado da moeda era singular e exagerada. Na realidade uma ligação tão perigosa que deixarei qualquer explicação em aberto. O amor tem e não tem fronteiras. Mas sempre terá suas próprias razões.

Eros discorda. Storge também.

-- Ana você pode vir pra cá hoje a noite?

-- Sim Leo, mas... Aconteceu alguma coisa?

-- Não exatamente.

-- Desembucha aí vai... Já até imagino! – ela riu.

-- Eu quero beijar sua boca, como ontem.

-- Ontem não nos beijamos.

-- Mas queríamos.

-- Queríamos?

-- Sim. Eu pelo menos estava fervendo de... De...

-- De?

-- Você vem?

-- Você me quer?

-- Ana, eu não sei o que estou sentindo, mas está me corroendo. Só de falar contigo minha perna treme.

-- Você me ama?

-- Não.

-- Pretende amar?

-- Acho que não.

-- Está apaixonado?

-- Estou... Terrivelmente... Mas eu sei que as paixões acabam rápidas e são tão violentas quão grandemente o são os mares bravios. Quanto antes acabarmos com ela, menos estragos veremos e sentiremos.

-- E se eu me apaixonar?

-- Nos apaixonaremos juntos.

-- Tem certeza?

-- Não existem certezas.

-- Ok. Estarei aí por volta das oito da noite.

-- Combinado.

Eu e Ana éramos assim. Cínicos. Talvez nos amássemos de verdade. Só faltava ainda descobrir. Todavia, ainda não estávamos prontos para quebrar duas, de três regras: tudo no sexo, nada no amor. E a paixão arrebatadora que sentíamos? Os beijos molhados, as línguas sentindo todos os sabores e saberes do outro, as mãos, as carícias, o tateio, a falseta; e o coração palpitava sempre, descontrolado, descompassado, impulsivo, entregue, fugidio. Se um abismo existia, cada vez mais íngreme e errante, sabíamos. Queríamos. Éramos escravos.

Perto das sete horas da noite eu despertei no sofá. Um sábado como qualquer outro: mensagens no celular, baladas à vista, amigos à espreita, cansaço da semana terrível no trabalho, os costumeiros programas decadentes da televisão. Dias enternecedores. O sol ainda estava alto no horário de verão. Um calor gostoso de fim de tarde, leve zéfiro sob as casas pacatas, nuvens de uma chuva passageira, cheiro de chão molhado e os carros, que buzinavam ao longe, parados no farol em algum lugar qualquer de Santo André no ABC Paulista. Meu refúgio sombrio, essa era minha especial zona de conforto.

Subi até o andar de cima da minha casa e fui ao closet, meu solo sagrado. Sentei no tapete e fiquei imaginando o que vestir. Nunca me preocupei em estar arrumado pra ela, não precisava ser bonito ou ser qualquer coisa, bastava a sensualidade do mergulho nos nossos instintos primitivos. Mas não sei, estava dúbio, desorientado, irrequieto. Espelhos davam-nos náuseas. Davam-me. Com certeza. Era cada vez mais cíclico. Escolhi um jeans batido, uma camisa pólo – modelo que adoro –, um belo par de sapatos e borrifei pelo corpo o suntuoso acqua di gio de Giorgio Armani.

Já eram nove horas e nenhum sinal de Ana. Um estranho sumiço. Agonia. Ansiedade. Porra, aonde diabos ela tinha se metido? Eu estava aborrecidíssimo. Demasiado irritadiço com aquele figurino de palhaço. Parecia uma situação injusta.

Toca meu celular.

-- Oi Leo.

-- Ana, onde você tá? – tentei me controlar.

-- No portão. Faz-me a gentileza de abrir?

-- Claro.

Não preciso dizer que ela estava magnífica. Um vestido branco que parecia sugerir pureza, uma impressão também de vazio e de infinito. Suas sapatilhas azuis destoavam, evocavam o frescor de um perfume inebriante e do doce e tristonho mel de seus olhos.

Caí dos devaneios quando vi sua calcinha transparecer. Era renda, sim, uma renda frágil e pequena, com estampas discretas que falavam através da minha curiosidade. Fulgurantes. Cantantes. Sorriam pra mim e diziam: “tens aqui as entradas para o teu prazer”. Era o canto do mais puro sentimento libertino. Ana sorriu, me deu um longo beijo na boca e disse em alto e bom som que eu estava bem perfumado. Aquilo foi de fato mais incomum do que se parece.

Ana tinha fome. Fome de comida, fome de sexo, fome de amor. Cada coisa em seu lugar e cada coisa de cada vez. A primeira fome saciamos com duas belas caixinhas de comida chinesa delivery. Esquecemos do mundo, da etiqueta e comemos como duas crianças. Rimos, brincamos, fizemos lambança. E então ela teve a brilhante idéia de colocar seu vestido pra lavar. Amizade colorida era assim, mas o que abalava a minha sanidade era a naturalidade forçada que desde o princípio eu não havia notado. Não havia ali apenas eu e ela, nos fazia companhia os fantasmas da psique humana, com eles seus medos, suas neuroses, suas vontades inequívocas. Pena que só eu – sem nenhuma certeza – tinha desnudado esse véu.

-- Que foi? – Ana me perguntou já de calcinha e sutiã.

-- Nada.

-- Não gostou da minha roupa de baixo?

-- Eu adorei. Só tô curtindo seu visual. Hoje você está muito sensual, mais do que de costume. Eu diria... Hum... Incrível!

-- Nossa... Estou chocada... Você não disse nenhuma vez a palavra gostosa, tesuda, bucetuda...

-- Chega! Você merece mais do que esses adjetivos idiotas... Vem cá...

Seus lábios eram néctares. Senti sua saliva, seu salivar endeusado, suas inefáveis picardias. Era um sentir deveras sublimado. Suas mãos abriram meu zíper enquanto sua boca queria engolir-me e eu a ela. Segurei-a pelos cabelos, tirava-os da frente para enxergar o vaivém do inteiriçado. Quase um gozo. Fechei os olhos. Deixei que o sonho me tomasse por completo.

Arrastamo-nos para o quarto. Mordi o bico dos seios pontudos, apalpei-os, deixei a língua tomar vida própria. Procurei seu sexo. Estava nua. Em corpo, alma e pudor. Completamente despida. Por dentro Ana fervia, soltava seu primeiro gozo, viscoso e terno. Não perdi uma gota, sorvi tudo com volúpia. Meu membro latejava. Precisava deixar fluir a seiva do orgasmo. Lancei-a ao chão com a força do algoz, quase corrupto, quase insano e angustiado pelo desejo impetuoso. Queria invadir-lhe como um ladrão e então lhe penetrei; duro, maciço, indelével, implacável. Cada estocada um grito meu e dela. Cada grito, uma sensação desastrosa do desassossego de quem sabe amar e não pode e de quem pode amar e não sabe. Ana entregara sua carne para o deleite – não apenas próprio –, enquanto sua alma em todas as ocasiões como esta era brutalmente violentada pela fome de amor.

-- Quero mais.

-- Quer mais sua safada?

-- Quero tudo.

-- Tudo?

-- Até o talo. Se é pra me foder, me fode direito, direitinho...

-- Assim?

-- Mais forte... Mais forte, vai! Vaaaiiii!

-- Eu vou gozar sua puta... Isso... Hummm...

-- Goza na minha boca... Goza tudinho, quero beber sua porra até o fim!

Fiquei alguns minutos fitando o teto. Assim acabavam nossas paixões. Um murmúrio soturno, água descendo pelos canos da pia e do ralo do chuveiro. A descarga da privada e o monólogo monossílabo de sempre.

Então, finalmente envolto num manto de astúcia e coragem, rompi com a tragédia.

-- Vou indo.

-- Espere Ana, quer que eu te leve em casa?

-- Não precisa.

-- Precisa sim. Quero lhe dizer uma coisa... Venha, vou pegar as chaves do carro e te digo no caminho.

O silêncio da viagem narrava um fato inconfundível: o amor e o desafeto que experimentávamos. Novamente eu rasguei a cortina do costume e insisti numa conversa que era na verdade uma batalha entre desiguais.

-- Ana eu acho que ultrapassei os limites da paixão...

-- Você me ama?

-- Sim. Sem dúvida que a amo como nunca amei ninguém.

-- Então as regras foram quebradas. É melhor pararmos por aqui.

-- Mas... – segurei a lágrima – se nos amamos... Você também me ama, né?

-- É complicado.

-- O que é tão complicado pra você? Eu sinto que isso que estamos vivendo há tanto tempo parece tão bom pra gente. Você antes saía tão feliz, sempre me ligava depois, trocávamos e-mail, íamos a tantos lugares, fazíamos tudo juntos...

-- Exatamente... Tínhamos uma relação desde o início e por isso as regras nunca existiram de fato, somente e exclusivamente a terceira, mas eram limites tolos que jamais impediriam qualquer transgressão. O que você nunca percebeu é que eu estava tentando ser sua amiga, te dizer que não daria certo porque eu não o amo, não como poderia. Somos amigos de longa data, longuíssima, transamos, bebemos, saímos, confessamos, estivemos até fora da lei. Mas, meu querido entenda,  jamais nós fomos um casal. E jamais seremos.

-- Por que não?

-- Não sei. Amo outro homem.

-- Não ama não.

-- Mas amarei um dia. E quando este dia chegar, quero estar bem longe de você. Você é puro tesão, puro desejo, pura carne e é só isso que é. Não sei o que te deu hoje, se foi o sol, a lua, a bebida, a solidão, qualquer inferno desse mundo, posso apenas crer que você está fora de si. Vá pra casa, tome um banho, durma e amanhã será um novo dia.

-- Um novo dia?

-- Um novo dia sem mim. Você nunca mais me tocará.

-- Sem você eu não existirei mais.

-- Que assim seja então e não será nunca de outra maneira. – foram suas últimas palavras antes de descer do carro.

Sangue do mesmo sangue. Apátridas. Jus sanguinis. As esquinas da história nos dividiam e uma casa não nos deixava separar. Os ventos já prenunciavam tal fim, não menos intempestivo. A paz que busquei nesse amor bandido se chamava liberdade. Spinoza disse certa vez que “se a paz tem de possuir o nome de servidão, solidão e barbárie, nada há mais lamentável para o homem do que a paz.” Ana e eu tínhamos muitos segredos execráveis e muitas guerras ocultas insolúveis. Nosso amor era – de longe – o mais desprezível. Para que fôssemos fortaleza um para o outro não deveríamos ir além do sexo e da amizade inventada. Ana entendeu Friedrich Nietzsche antes de mim. Jamais nos amaríamos pra valer naqueles dias escuros.

“Existe realmente aqui e além na terra uma espécie de prolongamento do amor, no qual o desejo experimentado por dois seres dá lugar a um novo desejo, a uma nova cobiça, a uma sede comum e superior, de um ideal que ultrapassa a ambos: mas quem conhece esse amor? Quem viveu? Seu nome verdadeiro é amizade.” (Nietzsche).

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

NATAL: 

CARTA AO MEU BOM VELHINHO

Todo ano é sempre a mesma coisa: eu escrevo para o Papai Noel e começo minha ladainha dizendo que fui um bom menino durante o ano. Deus e o diabo sabem que estou mentindo descaradamente sem nem ficar vermelho. Esse é um ritual que me dou ao luxo de fazer todos os anos, nos últimos trinta anos. Nunca recebi nada, nem resposta, nem presente, nem mesmo uma banana como a que ganhamos em época de eleição. Contudo, este ano resolvi fazer diferente, começando por dizer a verdade e eis minha niilista missiva: 

Querido amigo Nicolau, confesso que fui um garoto ruim (péssimo) este ano. Em muitas ocasiões cortei fila no banco, buzinei no trânsito – sem necessidade –, recusei dar esmola aos necessitados, briguei sem motivo, fiz greve de carinho, ofendi pessoas que amo, bebi além da conta, fumei escondido no banheiro, continuei guardando revista erótica debaixo do colchão, falei mal do meu chefe pelas costas, sacaneei meus amigos do trabalho, fiz piada maldosa – mas que fique claro que eu me arrependi depois –, espiei a vizinha trocar de roupa inúmeras vezes pela manhã, enfim, não resisti à quase nenhuma tentação. Por esses e outros motivos decidi não tentar tapeá-lo – meu doce senil. Até porque, se perdi minhas vãs esperanças nos últimos natais, tenho certeza que a culpa não foi sua Papai Noel. Apenas minha, dos meus deliberados excessos e da minha egoísta vaidade.

Contudo, não vim aqui para me desafogar das mágoas debruçado sobre verdades tão resolutas ou me apetecer de novos desejos sob o afã de uma argumentação interesseira. Estive pensando apenas na extirpe de nossas muitas almas, nas tentativas infelizes e agourentas de merecer o melhor, mas sem qualquer esforço desmedido. Espero que o senhor, meu bom velhinho, compreenda que o meu quebra-cabeça – não aquele que pedi aos dez anos de idade – está incompleto e a epifânia natalina não depende só das minhas e das nossas ações, mas das tácitas intenções que ao longo do ano se perderam na mesquinhez do cotidiano. Fiquei um pouco frustrado meu caro, mas não pelas devolutas esperas dezembrinas e sim isto é mais que uma certeza pelas promessas que quebrei nos últimos trinta anos. Por isso, querido Papai Noel, justiça seja feita: desejo-te o natal mais feliz de todos os tempos, espero de coração que seu trabalho árduo seja fecundo. Este ano não precisa aparecer por aqui. Nesta felicíssima data eu não quero nada.