segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

2018 E SUAS MUITAS VICISSITUDES...

Quando comecei a conjecturar sobre 2018 lembrei das lindas promessas que fiz nas festas dezembrinas do ano anterior. As pequenas missivas que colei como um post-it na superfície rasa da mente não foram poucas. Eram muitos sonhos e desejos a se desenrolarem no campo fértil da vida cotidiana. Exatamente 365 possibilidades.
Dentre tantos outros lembretes, que vão surgindo no decorrer do ano, os empreendimentos mais cobiçados foram se perdendo em meio ao nível alto de outras prioridades que fui atribuindo aos compromissos subsequentes. E os pequenos eventos que tiveram lá sua importância imergiram no mar agitado dos dias.
Cumprir tarefas é muito comum e nos habituamos a definir o que é mais relevante e necessário no devir do nosso calendário particular. É onde a magia se desfaz e a sucessão de afazeres piora. E muito. Esse é um exercício terrível. Ansiar demais em meio a busca pelo que é verdadeiramente eudaimônico. E procrastinamos a derradeira felicidade como meros humanos, “demasiado humanos”, diria Nietzsche.
Foi o que aconteceu nos últimos 12 meses com o "ser feliz". Nos desvelamos exímios sabotadores dessa empreitada. Considero até uma ofensa dada a quantidade de desculpas que disparamos à revelia em 2017. E notei que a maioria das pessoas que conheço foram condescendentes com a dor e o sofrimento. E não há como terceirizar a culpa das nossas intempéries se eximindo dos pequenos prazeres deixados à deriva.
Hoje é o primeiro dia de um novo tempo. Uma página em branco. O que escreveremos nela pode ser um desastroso épico ou a história sobre grandes feitos através das pequenas coisas. Não precisamos exaustivamente dar sentido a tudo que nos acomete e ficar recalculando rotas e metas tão agressivas no mapa da vida. Definitivamente não é saudável tanta tortura.
A alegria não se resume apenas ao sucesso e o reconhecimento. No fim da estrada os únicos troféus são as abstrações que extraímos do bom, do belo e do verdadeiro. Porque afinal, viver é também não correr riscos desnecessários. A única coisa que me propus neste início de ano foi o que já asseverava Sponville: “amar um pouco mais e reclamar um pouco menos.” E a partir daqui, num momento tão oportuno e apetecível como tal, o destino vai ser um estigma e um enigma exclusivamente do futuro. Seu lugar não poderia ser em outrora.
Que 2018 então nos surpreenda!

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

DENTRO DELA (ELE AINDA VIVE)

Letícia preenchia seu formulário de treino quando foi abordada por um dos professores da academia naquela amanhã.

- Letícia?

- Sim. Pois não?

- É seu novo treino?

- Ah sim Arthur. Comecei no início da semana.

- Você sabe que pode preencher online né? Agora você pode acompanhar seu ritmo de treino pela internet, ainda estamos desenvolvendo um aplicativo pra facilitar o controle. - disse ele educadamente.

- Entendi. Legal, depois dou uma olhada.

Letícia estava irritada naquela manhã. Teve uma péssima noite de sono depois de ter seu encontro desmarcado. Das redes sociais pululavam imbecis. Era como se ela estivesse sempre em segundo plano, resultando em três tentativas frustradas em um curto intervalo de tempo. No fim das contas o filme foi ótimo, a comida do restaurante estava perfeita, mas ela estava só, abandonada, à deriva no mar agitado das emoções. A solidão e a morte pareceram dialogar num monólogo triste e chuvoso naquele domingo. Letícia preferiu acreditar que não era o desmoronamento da felicidade futura, só um pequeno contratempo que não deveria estragar sua rotina semanal. Banho e cama, mais cedo, mais chorosa, mais revoltada, enquanto sua vida amorosa ruía. 

"Azar no amor. Eu poderia pelo menos ser milionária nesta vida".

- Letícia?

- Sim... desculpe, estava distraída. O que você dizia mesmo?

- Vê aquele instrutor encostado perto da cadeira flexora, que está de costas pra gente?

- Sim. O que tem ele?

- Será o seu personal a partir de agora. O Jamil pediu demissão ontem porque arrumou outro emprego. O seu professor novo vai te conduzir no treino, já olhou sua ficha hoje de manhã. O nome dele é Alexandre, mas ouvi dizer que o apelido dele é "Xandão". Acho que você vai gostar do cara...

- Alexandre... Hum... Desculpe a pergunta, mas qual o sobrenome dele?

- Alexandre Rosemberg, por que?

- Por nada... Apenas curiosidade... Se me der licença vou indo...

- Claro! Fique à vontade...

Letícia pegou uns pesos e começou a malhar perto dos espelhos. O novo personal veio em sua direção e ela se sentiu atemorizada. Tentou esconder a surpresa. Alexandre era seu ex-namorado na época do colégio. O fim do namoro depois da formatura se arrastou por meses. Ele dizia que a amava, que se mataria se ela não reatasse, fez inúmeras juras de amor. E de ameaça. Letícia se sentia perseguida, arrumou muitos paqueras e tentava fazê-lo se afastar e esquecê-la de uma vez. Foi inútil. Ele tentou o suicídio duas vezes, hesitou, salvo pela própria consciência dizendo que não valia a pena. Suas últimas tentativas foram as muitas cartas, mensagens e atentados hostis. Ficou inexoravelmente confinado em internação médica e depois sumiu do mapa. Letícia nunca mais soube dele. Depois de alguns anos quis procurá-lo, pedir perdão, tentar resgatar ao menos a amizade. Em vão. Fatalmente, e de forma repentina, surgiu a hecatombe quando há pelo menos duas semanas, depois de doze anos, ela recebeu um e-mail estranho e assustador. "Eu ainda te amo, você vai pagar pelo que fez". Não tinha remetente, nem assinatura. Era ele. O fantasma do eterno retorno.

- Letícia? Não acredito.

- Alexandre? Não acredito.

Ambos riram. Letícia sentiu no espírito uma inquietude.

- Sou o seu novo personal. Que coincidência não?

- Muito conveniente pra você né? - respondeu ela não pretendendo esconder a grosseria.

- Desculpa, não entendi.

- Como você sabia que eu treinava aqui?

- Eu não sabia. Quando me deram as fichas dos meus alunos a sua estava no meio. Eu não planejei nada disso.

- Sei.

- Se você estiver se sentindo desconfortável podemos trocar seu personal. Vou falar com o Arthur. - afirmou Alexandre já dando as costas para Letícia.

- Espera! Desculpa... Não precisa. É que... Essa situação me pegou de surpresa. Tínhamos coisas não resolvidas... Tantas mágoas... - Letícia o abraçou fortemente e deitou a cabeça em seu peito com lágrimas nos olhos.

- Tenha calma. Não estamos mais no passado, eu tenho outra vida, novos projetos, voltei pro Brasil há um mês e nem consegui arrumar minhas coisas ainda. Meu apartamento está uma tremenda bagunça. Sabe, desde aquela época sou o mesmo preguiçoso. Isso nunca mudou.

- Me perdoa?

- Não tenho nada que te perdoar. Esqueça... Vamos ao seu treino... Cadê sua ficha?

- Está aqui. Tem uns treinos novos pra bíceps e coxa que ainda não sei fazer direito.

- Vamos lá vou te explicar...

Letícia se revirava na cama. O sono não pretendia aparecer naquela noite. Sua cabeça era um turbilhão de pensamentos.

Alexandre fitava o teto. Pegou no sono aos poucos e depois adormeceu devagar. Na manhã seguinte teve a sensação de ter despertado de "sonhos intranquilos".

***

- O Alexandre não veio hoje? - perguntou Letícia animada.

- Sim, ele está lá no fundo. Precisa de alguma coisa? - questionou Arthur.

- Estou com dúvida em alguns treinos.

- Espera um pouco.

- Amanda! AMANDA! Dá um pulo aqui. 

Letícia hesitou. Não quis ser indelicada, mas não pretendia ser atendida por outra pessoa.

- Sim chefe. - Amanda se apresentou prontamente.

- Esta é Letícia.

- Tudo bem amor?

- Sim. - Letícia estava ainda mais hesitante e nervosa.

- Essa é sua nova personal. - disparou Arthur.

- Como assim? E o Alexandre? Não estou entendendo...

- Ele pediu para remanejar alguns alunos de sua turma. Não foi nada pessoal.

- Tudo bem.

- Tudo bem mesmo?

- Sim.

- Ainda precisa de ajuda? - perguntou Amanda.

- Preciso sim.

Letícia passou alguns dias com o humor em frangalhos. Arthur percebeu o clima pesado entre ela e Alexandre, mas decidiu que não se envolveria. A história dos dois não o interessava, a menos que impactasse na rotina profissional da academia. 

No fim de semana Letícia saiu com umas amigas pra curtir, beber e esquecer. Muita música e álcool num bar nostálgico de rock pesado. Sua amiga de infância e companheira de todas as horas era Lene. Encontros esporádicos. Experiências intensas. A amiga da vez.

- Foi homem de novo? - inquiriu Lene.

- Acho que sim, sei lá... 

- Vou reformular a pergunta: foi pinto ou foi homem?

- Explique.

- Quando o pinto nos afeta, a gente troca de pinto e pronto. Sexo mal feito é fácil de resolver. Uma chuveirada e lavou tá novo. Agora quando é homem é foda, eles mexem com nossos sentimentos, machucam de um jeito tão perigoso que nem a maior rola do mundo machucaria... Se é que me entende.

- A pauta de hoje é sexo versus amor?

- Mais complicado que isso. É paixão que transcende, que nos leva a um estado mais potente...

- ... E mais perfeito do próprio ser. - completou Letícia.

- Espinosa.

- Eu sei. Você se esconde atrás do pensamento espinosano pra justificar suas irresponsabilidades diante das relações afetivas. Nunca se apegou?

- A um pinto?

- A uma pessoa, sua cabeçuda.

- Já sim e sofri muito, quase entrei em depressão. Mas eu decidi que nenhum homem mais me faria chorar e sofrer outra vez. É humilhante.

- Aí você decidiu ser livre?

- Aí eu decidi ser puta e pegar geral!

Letícia riu alto.

- Vamos pra pista, a banda vai começar a tocar.

Lene pegou a amiga pelo braço e a arrastou para perto do palco.

- Devagar que eu ainda estou na brisa daquele trovão azul.

E as duas começaram a pular quando as guitarras berraram como as deusas da noite. Letícia chorou na terceira música "digital bath". Era sua preferida.

- São dois.

- O quê você disse? - gritou a amiga secando as lágrimas de Letícia.

- São dois, os homens que estão me destruindo por dentro.

- Ah não... Logo dupla penetração?

- Pára! Mas que mania essa a sua!

- Vem cá minha menina...

O silêncio pareceu lhes tomar a percepção de espaço-tempo. Um beijo explodiu entre as duas no meio da multidão alheia ao que irrompia entre elas.

**

Duas semanas haviam se passado. Letícia e Alexandre eram quase dois estranhos, exceto pelos "ois" que trocavam todas as manhãs. 

Durante um dos treinos Letícia se machucou levemente e teve que ser atendida na enfermaria. Sem professores disponíveis naquele momento Alexandre a acompanhou e o frágil jejum de taciturnidade entre eles tinha se rompido.

- Está se sentindo melhor? - perguntou Alexandre com fineza.

- Estou sim, obrigada. Pode ir se quiser, daqui eu já consigo me virar.

- Eu queria antes te pedir desculpas.

- Pelo que?

- Por ter desistido de tê-la na minha turma.

- Tudo bem.

- Tudo bem não. Eu me sinto execrável. Eu não estava à vontade desde o início. Antes de te ver já tinha pedido ao Arthur que não colocasse você comigo. Senti medo do que poderia acontecer. Eu fui covarde, mas ele insistiu, disse que bons profissionais têm coragem de enfrentar seus medos e desafios. E eu... Sinceramente não entendo esse blablablá de motivação... Sinto muito...

Letícia respirou fundo antes de falar.

- Eu te entendo. Temos muito que conversar. Não podemos mais fugir dessa conversa.

- Eu não quero conversar.

- Não?

- Eu quero fazer amor.

Ela tentou disfarçar o suspiro de indignação.

- Desculpa. Você está falando sério?

- Muito.

- Fazer amor. Sabe o que isso significa? Já pensou nas consequências? - Letícia perguntava de forma imperativa.

- Não quero pensar em nada. Não estou te pedindo em casamento. Eu estou apaixonado por outra pessoa e achei que você poderia...

- Apaixonado por outra pessoa e me quer nua na sua cama? Mas que que absurdo!

Letícia deu de ombros e virou o rosto pincelado num tom vermelho de ira.

- Sim. É você essa "outra pessoa" - disse Alexandre tocando no rosto dela levemente - por quem estou caído de tesão. Não é minha pretensão criar laços afetivos que nos responsabilize pelo resto da vida. Eu quero apenas terminar uma noite abraçado contigo, sem dizer nada. E o imprevisível que faça seu jogo e nos surpreenda.

- Você é bom com as palavras.

- E não pretendo ficar unicamente no discurso.

- Sexo sem compromisso? Essa é sua proposta?

- Amor sem regras. - Alexandre foi taxativo.

- Como chegamos mesmo nessa conversa?

- Acho que estamos num lamentável estado menos potente...

- ... E menos perfeito do próprio ser. Mais um espinosano querendo explicar a tristeza em minha vida.

- Fiquei sem palavras. Sou vibrado no pensamento de Espinosa. Estudei a filosofia dele durante os anos que fiquei fora. E você completando minha citação... Pega meu telefone... Quando puder me liga. Estou seriamente afetado...

- Afetado?

- No real sentido da palavra.

- E mesmo assim vai correr o risco de arruinar sua vida por uma mulher que já te machucou muito?

- Tenho certeza. Aliás, não tenho. Estamos para a vida, como uma folha está para uma tempestade de afetos que não podemos controlar.

- Quero ver aonde isso vai nos levar... Senhor Espinosano...

Letícia remexia a bolsa procurando seu cartão de crédito para pagar seu almoço e voltar rápido para o escritório. Ela estava pilhada de trabalho naquele fim de mês. Subitamente o papel com o telefone de Alexandre emergiu na bagunça de suas coisas. Ela esvaziou seus pulmões entregue a um lamento de angústia. Era hora de se decidir.

"Eu quero fazer amor". Letícia revirou-se na cama. O relógio marcava três da manhã. Seus pensamentos eram indomáveis. Suas vontades eram cavalos selvagens. Letícia pegou o celular. Ouviu a voz do outro lado. Ficou muda por um breve instante.

"Venha me ver". 

"Agora? E assim do nada? Você é maluca?"

"Preciso muito de você e não pode ser amanhã".

"Chego em meia hora".

"Nem um minuto a mais".

Letícia ouviu o ronco do motor desligando em frente à sua casa. A hornet amarela parecia ter pousado de um castelo de nuvens. Era o som da pantera. Uma sombra se projetou no muro, depois na janela e um vulto entrou como um raio negro atravessando as cortinas do quarto. Letícia se entregou a um beijo ardente enquanto tirava as roupas. Seios à mostra. Seu gemido foi abafado por uma boca que lhe chupava todos os poros do corpo. A nudez era um destino implacável.

- Por que me chamou a esta hora? - perguntou Lene acendendo um cigarro ao sair do banheiro.

- Não sei. Estava sem sono. E cheia de tesão.

- Foi homem de novo?

- Infelizmente...

- Sai dessa vida. Já falei pra tu arrumar um pinto!

- É o Alexandre.

- Que Alexandre?

- Meu ex-namorado do colégio. Lembra dele?

- Caraca! Que merda! Jura que é ele mesmo? Por que não me contou antes?

- Você iria me criticar.

- Ia mesmo. Sua vaca. Tá saindo com ele?

- Ainda não. Ele tá diferente agora...

- Minha criança... Percebe o que tá acontecendo? As pessoas mudam muito pouco e nos enganam falando de maturidade, respeito, esperança de alegria em um mundo de tristezas... 

- Ele parece outra pessoa.

- Então foge. Estou sentindo um maremoto.

- Não sei o que fazer. - Letícia tapou o rosto com as mãos tentando esconder que lacrimejava.

- Você tá caidinha por ele. É evidente! Garota desculpa te dizer... Você tá perdida...

**

Eram quatro horas da tarde quando Letícia olhou no relógio. Uma sexta-feira calorenta e com cara de chuva.

"Vem tempestade por aí senhor Wayne" dizia a TV acima do balcão. No bar já passavam das dezoito horas. Pessoas transitavam entre as mesas, esbarrando nas pessoas, rindo alto. Letícia sorveu um gole de seu vinho e ficou passando os dedos em volta da taça.

- Então...

- Conte-me o que fazia na Inglaterra. - disse Letícia iniciando o que parecia ser uma longa conversa.

- Eu estudava numa faculdade pequena em Londres chamada "University of Greenwich". Lá eu fiz administração e uma pós-graduação em direitos humanos. Dedicação exclusiva... Aí você deve estar se perguntando o que me trouxe de volta ao país pra trabalhar como professor de educação física em uma rede de academias.

- Exatamente.

- Não cheguei a atuar na área administrativa depois de formado. Na verdade o curso de administração era cansativo e chato. Não era minha vocação. Quando me especializei em direitos humanos descobri no esporte uma poderosa ferramente de inclusão social. 

- Certo... - disse Letícia, desdenhosa do que ouvia, e franziu o cenho desconfiada - continue... Sou toda ouvidos.

- Imagino que você não saiba - Alexandre insistiu com sutileza - mas em muitas regiões de extrema pobreza, como na África, o povo tem acesso irrisório à prática de esportes. A educação física de forma assistencial pode programar atividades coletivas de recreação, lazer e até desenvolver algum projeto dentro da área da saúde e bem-estar, oferecendo qualidade de vida para populações marginalizadas. O esporte serve como modelo de reintegração social necessária, de interação entre culturas, de recuperação da dignidade do Homem. Você entende a dimensão desse trabalho? 

- Entendo sim. - Letícia se retraiu percebendo seu julgamento leviano e incauto.

- No exterior é difícil conseguir espaço pra elaborar um projeto efetivo. Ainda mais sendo um estrangeiro lavador de pratos. Consegui fazer três anos de educação física e voltei pro Brasil. Encontrei aqui um campo imenso de atuação.

- Lá na Inglaterra você tinha bolsa de estudos?

- Não tinha bolsa não... Eu trabalhava de madrugada num "sex pub" pra me manter... Muitas putas e gente se drogando o tempo todo. Era esquisito.

- Sei. E as inglesas são boas de cama?

Alexandre sorriu percebendo que ela queria mudar de assunto.

- Sim. Melhores do que algumas brasileiras.

Letícia ficou séria. Percebeu a indireta.

- Como você pode falar assim das mulheres da sua pátria?

- De algumas.

- Nossa! Eu fui tão ruim desse jeito?

- Foi sim, naquela época.

- Você sumiu e sua família não quis me dar nenhuma informação quando te procurei uns anos depois. Eu estava arrependida de tudo que tinha feito... 

- Meus pais ficaram muito magoados com o que aconteceu. Gostavam de você. Eu fiquei internado três meses num hospital psiquiátrico porque tentei o suicídio duas vezes tomando remédios. Na clínica eu estava sempre sedado, desligado da Terra e não vivia mais, apenas vegetava... - Alexandre mudou sua feição para um gesto sombrio e seu olhar havia perdido o brilho.

- Eu não sabia... Olha eu nem sei o que te dizer...

- Fica em paz, eu sobrevivi... Causalidades do destino... No ano seguinte minha família me enviou pra Londres. Foi um intercâmbio de urgência. 

- Fácil assim ir pro exterior?

- Meu tio Antony conhece umas pessoas e mexeu uns pauzinhos.

- Entendi...

- Vou pedir mais uma garrafa de vinho...

- Como quiser meu príncipe... Ainda temos muita carne pra moer na máquina sangrenta da filosofia... - ela gargalhou impiedosa.

- Como quiser milady. Na "insustentável leveza do ser" os seus desejos serão uma ordem!

- Veremos...

E dois errantes passaram a madrugada com meios sorrisos, na permuta pelas verdades irresolutas e vendendo, cada um, suas imprecisas e duradouras conjecturas.

**

Letícia ouviu a descarga e depois a água que descia pelo ralo do chuveiro. Era o décimo encontro entre ela e Alexandre. O sexo estava cada vez mais febril. Ele sabia manter o ritmo das estocadas e as palavras de carinho sussurradas no ouvido dela. Parecia um sonho. Cada encontro era um novo frenesi.

"As inglesas te ensinaram muita coisa" Letícia pensou enquanto abraçava o travesseiro. Sua mente flutuava numa alegria quase nostálgica. Aquele amor entre eles era uma espécie de catarse. Alexandre deitou-se novamente. Estava úmido e gelado.

- O que você tá fazendo?

- Posso dormir aqui hoje?

- Por que?

- Fiquei com saudade de dormir agarradinho com alguém...

- Com alguém?

- Com você meu amor... Com você...

- Sei. - Letícia ficou magoada.

- Calma meu anjo... Eu estava testando seus sentimentos...

- Não gostei, não faz mais isso. Ok?

- Ok. 

- Às vezes você me assusta Ale...

- Não sinta medo... São provocações filosóficas, apenas isso...

Alexandre abraçou-a como se nada tivesse acontecido. Letícia sorriu e depois de muitos meses adormeceu profundamente numa noite vazia de alegorias fantasmagóricas.

A manhã entrava pela janela dando seu bom dia com gotas fracas de sol rasgando o mormaço. As mãos leves de Letícia tatearam a cama. Os lençóis projetaram as marcas de um homem que provavelmente saiu cedo, na pontinha dos pés, para não acordá-la. Ela levantou-se e foi até a cozinha. Havia um bilhete dobrado em cima da mesa. Poucas palavras. E um terror lhe tomou a lembrança sórdida de um recado anônimo. Ela deu um sobressalto enquanto o papel caía de suas mãos.

"Eu ainda te amo. Você vai pagar pelo que fez".

Letícia tentou se esquivar da faca, mas foi atingida no ombro, depois abaixo do tórax. Sua visão ficou turva. Os gritos de socorro não saíram. Suas pernas adormeceram e ela caiu no chão sentindo a vida esvair de seu corpo enquanto era estripada.

Gotas de chuva montavam na janela um caleidoscópio transparente. Eram os momentos finais se desenhando naquelas vidas demasiadamente estúpidas. Letícia pulou da cama. Resfolegou se recuperando do pesadelo num silêncio murmurante. Olhou ao redor. A cena se repetia como um déjà-vu. Ela foi até a cozinha acautelada pelo medo do perigo. O bilhete em cima da mesa era apavorante. Sua via crúcis. Ela desdobrou o papel receosa. Leu cada palavra. Os olhos marejaram. Beberia aquele cálice até o fim. E suas pernas perderam a força. Seus lábios estremeceram.

"Quero me casar com você".

Ela disse sim. E tiveram filhos lindos.



Arquiduque.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

NOSSOS PUDORES CONTRA NOSSAS PULSÕES!

Na cama não há segredos que não sejam revelados, nem bons, nem ruins. Não há palavras que se confrontem em uma discórdia eterna de mundos sexistas. No tesão não há gênero social, sexual ou de etnia. Entre quatro paredes tudo é lícito e conveniente, tudo pode se duas bocas coladas fizerem a alma sorrir. O resultado do amor é este: um infinito que não se explica por si só.

Então o porquê deste nosso medo estúpido? Esse pudor falso por trás do olhar sujo de desejo? Porque mais do que uma simples excitação do teso, eu te quero por inteiro já que o amor não se serve aos pedaços. Diga o que quiser ou deixe o silêncio nos tomar de assalto. Sussurros e suspiros são as impressões digitais que a paixão vai deixando ao longo da vida em nossos corpos. Entre nós existe apenas uma vontade evidente que não admite engano, mentiras e fugacidade. A torpeza é impedir o sexo manifesto, carne dentro da carne e rios de seivas do gozo. Vamos dar as mãos esta noite e esvoaçar em forma de gaivotas livres. Assim descobriremos a tesura: o estiramento, por um segundo, do martírio do próprio Homem.

Arquiduque Eliel.

domingo, 1 de novembro de 2015

RECAPITULANDO...

Quando sentei na frente do computador respirei fundo. Olhei ao redor e percebi que estava mais conectado com o mundo, mais vivido, mais maduro. Contudo, fui tomado de assalto ao perceber que antes era caneta, papel e muito, mas muito café. Hoje apenas um copo d'água, quarto pequeno, tempo escasso, trabalho exaustivo e alguns Gadgets à mão. As coisas mudam, as pessoas mudam e a nostalgia de quem ainda somos permanece. Voltei com bastante desejo, mas me entregarei em doses homeopáticas porque a idade chega e a ponderação vira sinônimo de prudência e parcimônia. Não limpei a casa, apenas troquei a cor dos móveis. A fragilidade da quintessência continua inalterável. Por enquanto lhes adianto uma poesia levemente sensual e garanto que estarão por vir novas aventuras deste literato inconfundível. Palavras soltas agora estão se juntando de forma singular. E o personagem? Este continua incorrigível.

O que realmente sinto...

São apenas prazeres sombrios
De várias vidas de outrora
E taças cheias até a metade
Pratos com rastros de hábito noturno
São beijos [sobremesas adocicadas]
     Felinos
         Perturbadores da paz
Pecados macios em poesia selvagem
Corpos desnudos
    Suor
          Lágrimas 
                     Aplausos
Que a festa termine
Apenas
Enquanto apenas observo
Seu dormir não possui sonos
Mas ausências
Seus gritos estão vazios de amor
          Dor
             Gozo
                   E descaso
Estocadas entre risos e línguas
Novos gemidos
Divã no afã da felicidade
É tudo natureza morta
A seiva em sua boca
Alimenta a paixão e o desespero
Desejo execrável
Silêncio e sombras
Num adeus distante
Sexo, arrependimento e cinzas
O vaivém acabou
            E lentamente
Nos encontramos no mesmo fim dos encontros...



Arquiduque Eliel.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

FELIZ ANO... NOVO?


Mais um ano que chega ao fim. Com ele muitas promessas que ficaram em segundo plano e suas muitas vicissitudes. Não há nenhuma novidade nesta questão pela simples ambiguidade da coisa. Tudo que vai, volta; todo começo tem um fim. O grande mote fundamental é: onde começa? Aonde vai terminar? A partir desse pressuposto o incomensurável se torna ardil e maravilhoso.

Falemos do ano que se passou num presente contínuo, no futuro do pretérito, num passado tão recente que ainda podemos tocá-lo antes que se despeça. É o que a vida faz de melhor. Ela nos dá experiência, amigos, amores, filhos e – claro! – cabelos brancos. Neste último ano tínhamos cabelos menos grisalhos, preocupações mais ponderadas, percalços diminutos pela força dentro e fora de nosso espírito. Engraçado que nesses últimos dias quisemos terminar com grande afã o que não tivemos nenhuma pressa nos outros onze meses. Foi mais uma ocasião de se despedir de entes que fizeram sua última viagem, de dar boas vindas a quem chegou repentinamente sem avisar, de olhar nos olhos de quem amamos há muito tempo e não proferirmos uma única palavra, apenas gestos silenciosos de carinho. Sem falar na perspectiva platônica do desejo frustrado, no corre-corre cotidiano, na beleza da chuva e na tormenta das tempestades que nos deixaram inertes. 

A noite anterior despencou em uma catarata de emoções nostálgicas. Contamos os últimos segundos rememorando o que vimos na televisão, as noites curtas do amor carnal, o tabagismo ocasionalmente oportuno, a promiscuidade, a insensatez, a infertilidade do egoísmo. Deixamos escoar pelos dedos os minutos finais dos dias dionisíacos de liberdade, das discussões calorosas e desnecessárias, dos beijos inesperados, da embriaguez imoderada e (sobretudo) das intensas tragédias episódicas que vivemos à revelia. Ninguém saiu incólume. Contudo, fomos além – muito além – e, ao deixamos partir as lembranças, contemplamos com afinco a virada da maré.

Esse ano que se despediu pode ter sido muito promissor ao passo que demasiado derrotista. Não é fácil calcular quantos maços de cigarro nós compramos, quantos cafés, quantas cervejas tomamos, quanto gastamos com bobagens e quanto guardamos em espécie para não sermos abocanhados pelo consumismo desenfreado. Mas não é preciso ser economista pra enxergar o quanto gargalhamos e o quanto fomos felizes. Pior ainda se imaginarmos quantas lágrimas caíram e pra quanta gente demos uma “forcinha” nas adversidades: matamos uma alcateia por dia. 

Entoamos uma canção todos os anos sobre o “capitalismo selvagem”. Mas essa condição humana e essa barbárie que nos egressa para um estado hobbesiano total de natureza não é – nem de longe – culpa direta do capitalismo, mas das nossas ações, do que aceitamos docilmente, do que resolvemos deixar pra lá porque a peleja era muito exaustiva. 

O ano de 2013 não foi o leito de um rio menos violento, nem a água límpida e branda de uma praia paradisíaca. Ele foi sem dúvida o que não seria de outra forma: um pouco mais de vida no tempo sombrio dos Homens. E o próximo ano já está aí novinho em folha, nele depositado a esperança como a única coisa que restou na caixa de pandora. Até poderíamos arriscar em dizer que ele é um livro com páginas em branco esperando para ser cunhado a ferro e fogo. O que remanesce na gente é se iremos gravar no decurso do novo ano os nossos heroísmos ou a nossa inglória. Enfim... Meu desejo para esta nossa nova etapa é simples, mas exageradamente laborioso: humanidade, uní-vos!

A todos um feliz e próspero 2014!

quinta-feira, 11 de outubro de 2012




QUALQUER ENTENDIMENTO DESNECESSÁRIO



Não entendo porque me reservo tempo
Tantos minutos, horas nem tanto
E conto nos dedos os segundos mágicos
Como se a rua em encruzilhadas tântricas
Fizesse nós nas pernas da avenida nua.

Paro o lápis antes do rabisco
[a caneta antes do borrão]
Não tenho medo do vazio que consome
Mas do terror no amanhã da palavra dita
Textos, cadernos, sussurros e gozos
A silhueta atrás do véu da noite se insinua
O sabor salgado se misturando à doçura.

Sinto então tua face frágil e cálida
Fervendo de pudor e mergulhada em timidez
O altivo desejo, insumo de qualquer pudor
Teu sugar, tua língua voraz num mel de volúpia
Sobre mim a humanidade e o teu poder
Nenhuma nudez será castigada no velho Rodrigues.

Os gritos. Os gemidos. Os movimentos truculentos
Espasmos, escárnios, mordidas, estocadas
O que restará antes do fim da poesia?
Lembranças, sorrisos, suores, bocas molhadas
Depois a inquietude, depois 
... Apenas silêncio.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

SOMBRA NO CREPÚSCULO...


Melissa estava cansada do silêncio. Era hediondo, perturbador e profundo. Um silêncio que vinha do lugar mais remoto da terra: a alma humana. Mas não era só isso, ela estava num crescente estado de pânico. Noites mal dormidas. E aquela quietude abismal que a destruía. Nem ao longe, sequer um único som retumbava. O som de um carro, vozes de estranhos, passos de transeuntes, nada ressoava na escuridão que a violentava. Melissa apenas podia sentir a garganta cada vez mais seca.

A madrugada avançava e Mel ora fitava o teto, ora rolava na cama. Levantou-se finalmente. Abriu a gaveta e com ajuda de seu abajur velho ela folheou indiscriminadamente bulas e receitas médicas em busca de algo que lhe devolvesse o sono ou a reconfortasse das lágrimas e do infortúnio. Entre os papéis estavam todos os seus exames de rotina; cardiovascular, cardiorrespiratório, eletrocardiograma, eletro-encefalograma, audiométricos, entre tantos outros. Tudo estava em perfeita simetria. Para melissa não existia nenhum distúrbio que explicasse aquela sensação de um frio intenso capaz de rasgar seu corpo ao meio. Não havia nenhum mistério além de uma certeza iminente.

O que mais a irritava eram os remédios psicotrópicos receitados pelo seu psiquiatra. Ele dizia que o grande mal daquela pequena era o mesmo mal que assola a humanidade: a insônia. Mel odiava-o com todas as suas forças, porque sabia que toda vez que ficava sozinha com ele a conversa ironicamente se inclinava aos apetites sexuais daquele senil. Suas mãos rançosas e ásperas lhe davam náuseas. Melissa discordava da loucura em que se via mergulhada. Diagnóstico clínico: esquizofrenia. O esfalfamento a engolia e o dia-a-dia fazia aumentar sua austeridade e tornava sua polidez cada vez mais diminuta.

Melissa abriu a geladeira. Sorveu um litro de água em longos goles. Nenhum efeito. A sede aumentou. Ela abriu o freezer e viu uma garrafa de uísque comprada há meses. Ainda estava lacrada. Arrancou ferozmente o lacre com tampa e tudo. Bebeu quase meia garrafa num único gole. Nada. Outro trago de uísque. Mais longo, amargo, pungente. Sua cabeça girou e ela caiu sobre a cama enquanto ouvia a garrafa se despedaçar no chão. "Vá se foder" ela gritou para si mesma. "Sua burra". 

Melissa sabia que aquele silêncio apavorante não era habitual, não fazia parte da noite, nem da calmaria da cidade quando dorme. O silêncio era a voz do demônio espreitando a alma, oferecendo a ela o evento mais deprimente da vida: o espetáculo da morte.

Ela tinha certeza mais do que ninguém sobre o vazio que rondava seus dias. Pessoas cochichavam atrás das portas, esquivavam-se de conversas íntimas e abraçavam-na como se fosse o último adeus. O tempo era cinzento e pesado como chumbo e dentro dela o amargor consumia seu espírito. Sua cabeça era uma tempestade.

Pesarosamente Mel caminhou até o lavabo desviando dos cacos de vidro. Olhou-se no espelho. A palidez não mais a incomodava, só o maldito silêncio. Ela então lavou as mãos e o rosto, abriu o armário do banheiro e pegou dois comprimidos. Um analgésico e outro antidepressivo. Tomou ambos de uma vez. Voltou a olhar-se no espelho. Procurou em vão algum fio de cabelo que lhe restasse da quimioterapia. Porém, Mel nem via mais seu rosto, apenas o de um esqueleto com pedaços de pele putrefata. Suas entranhas estavam abertas e suas vísceras dependuradas. Melissa coçou os olhos. As entranhas doíam e continuavam a escapar para fora do ventre. Parecia real. Ela não estava louca. A visão do noivo indo embora com outra mulher lhe atormentava tanto quanto as ligações em vão para amigos que desapareceram. Sua vida tinha sido desperdiçada. 

Ela nada fez senão contemplar sua hora. Desistiu de lutar e se entregou completamente à fatalidade. Suas roupas estavam ensopadas de sangue coagulado. Mas era belo saber que somente o som do vento soturno poderia acalentar seu desassossego. Melissa soltou a faca e virou-se abruptamente abraçando sem medo quem tanto a esperava atrás das sombras do crepúsculo. Seus pulsos adormeceram. Seu corpo e sua mente saíram de sintonia. Restou o sorriso e o lamento.

“Enfim sós, meu amor”. Era o sussurro que enfim rompia o silêncio e o drama. “Venha, vamos dançar nossa valsa.” Insistiu a morte esticando seus braços esqueléticos para melissa. E dançaram engalfinhados em direção ao infinito. No meio do quarto um corpo tombou sem vida. Ela finalmente estava livre.

quarta-feira, 6 de junho de 2012


ANA (SEUS LÁBIOS SÃO LABIRINTOS).








“Meu Deus!” Eu pensei quando despertei do sono profundo. Ela estava ali, simplesmente nua. Coloquei as mãos na cabeça e me sobreveio a mais triste indagação: “o que eu fiz?” Na boca o gosto forte de bebidas e cigarros. Na cabeça a fúria dolorosa de uma noitada de sexo, drogas e rock’n roll. Não é apenas um jargão, nem um clichê em desuso. Era a mais pura verdade, a mais vívida das perversões.


O ato estava consumado e tudo estaria bem depois de muita água e analgésico, não fosse pela realidade nua e crua que se apresentava. Ninguém sabia nossa história, se é que tínhamos alguma. Não sei dizer se ora éramos amigos, ora amantes, se nosso sangue era de irmãos ou de almas extremamente errantes. 


Eu não conseguia se quer olhar para ela, tão linda e desnudada e tão bucólica. Seria a paixão uma forma arrebatadora de pagar nossas iniqüidades ou nela protelar nossa redenção? O cheiro me dava náuseas e as marcas que deixamos em nossos corpos a grande repulsa. Tudo que vivemos numa noite era mais do que meras impressões. Afrontamos o sagrado e nos deleitamos do profano.


Corri para o banheiro e deixei que água escorresse por meu corpo. Eu queria lavá-lo, apagar o que de maléfico e malicioso nele ficou tatuado. A mente turva e corrompida não tinha como ser expurgada de seus terrores.


“Vem brincar com o papai”. Era o sussurro dele de volta a me assombrar. Mas ninguém mais me tocaria se eu não permitisse. E eu jamais colocaria numa bandeja de prata a juventude de quem quer que fosse, a inocência dos igualmente vulneráveis. Sentei no chão do banheiro e chorei. “Mamãe não está mais aqui”. Onde estará?


Respirei fundo e me levantei enfático. “Hoje não”. Desliguei o chuveiro e descalço tateei a parede procurando a toalha. Ela jamais me veria nu novamente. Nem nu, nem rijo, nem com qualquer vestígio de um desejo carnal. 


-- Ana! – chamei-a como o algoz.


Silêncio.


-- Ana!


Lancei-me quarto adentro numa busca feroz. A casa estava tão vazia quanto meu gene egoísta. A porta da rua – entreaberta – era um claro sinal de fuga. E ficou a sensação nítida de uma alma fugindo de si mesma. Do que fizemos. Dos nossos pecados e da nossa insensatez.


Dos meus pais a lembrança do enterro da própria mãe, do pai beberrão culpado de minha puerícia rasgada com a tênue gilete que cortava borboletas. Um prodígio vendido como boneco de porcelana. Nem a morte me queria, então matei o meu torturador e escondi-me durante anos na figura de um pai ausente. Hoje descobri que tinha descumprido a promessa de não ferir mais ninguém. 


Ana. Seus lábios são labirintos.



quinta-feira, 24 de maio de 2012

POESIA




ERÓTICA


Incêndio no fogo brando
Bocas pérfidas e línguas nuas
Beleza crua. Na pele tua
Meu perfume (habitat)
No fundo das nossas carnes
É como me sinto quando te possuo
É ardor quando teu desejo vive em mim
Amor fugaz. Silêncio insano dos atrozes
O que somos um para outro?
Das paixões os albatrozes
Vamos nos comer e nos consumir até que morte
Até que a morte nos separe,
E rasgue-nos ao meio com teus trovões
Antes da alegria a tristeza personifica
O apego é isto: saúde e doença e tempestade.

II

Vejo-te a olhar-me quase desfalecida
Angelical e demoníaca enquanto suga
Molha, sente, goza e gosta. É paradoxo
Pede mais até que eu perpetre o crime
Teu prazer; barbárie que me agasalha
O sorriso - servidão e solidão que engana
Assim eu sigo o ritmo do vaivém inteiriçado
Dentro de você é estar mais dentro de mim
Quanto mais intenso, mais gritos, mais ofensas
São nossos dias dionisíacos. Ciclos vitais. Afrodite.
Então eu derramo em ti a seiva que precede o fim
O mesmo fim de todos os dias na mesma cama.

III

Na tua face ardente fica o beijo
A despedida, o sussurro, o arquejo
Tuas mãos perdem-se em meus dedos
O abraço e o calor se desmancham no ar
Fenecer do rito, tragédia dos impudicos
Eu – o sagrado e o puro que profana.
Tu – tímida e despudorada que inflama.
Sempre erótica 
Sempre louca 
Sempre desnuda
Sempre.







segunda-feira, 30 de abril de 2012

XEQUE-MATE!

Talvez eu esteja me enganando. Ou quem sabe tenha colocado na lata do lixo todo um tempo estimável do qual eu poderia ter construído um pensamento análogo à grande maioria das respostas que busquei para acalentar essa alma medíocre e duvidosa. Mas, ao contrário disso, este mesmo tempo valoroso se pauta e se perde numa explicação que talvez nem fosse necessária. 

Falar de amor como uma bula farmacêutica e se referir ao sexo como se fosse um produto enlatado e empilhado numa prateleira de supermercado é fácil. Facílimo. São valores diferentes e também tragicamente indistintos. Quando entramos num círculo vicioso e esse ciclo se torna um paradoxo, sempre dá merda. Sempre.

Explicar como fazer amor numa cama onde só se enxerga sêmen e clitóris, rascunhando, detalhando minuciosamente as picardias mais sórdidas da juventude é algo que beira o ridículo. Hoje as pessoas podem me rotular de qualquer coisa: perverso, altivo, maldoso, mesquinho, talentoso, sexólogo, poeta, sedutor ou nenhuma delas. 

O fato é que nesse momento pouco importa o que pensam de mim ou da maneira como procuro no sexo uma representação profícua e ao mesmo tempo libertária da hipocrisia de alguns ou tantos elementos que norteiam o medo por trás da nossa sociedade mentecapta. 

Façam suas apostas que até o fim dessas linhas muitos acharão o cúmulo a minha mania grosseira e tempestuosa de tocar num assunto tão delicado aos olhos dos ignóbeis e dos românticos. Contudo, podem escrever meu nome na lista dos criminosos passionais (nem ligo), só peço que moderem a relevância acusadora, afinal, felizmente - e sem exageros - ninguém morreu (nem morrerá) por aqui.

Acordei de súbito esta manhã, sobressaltado com o telefone berrando estridente na minha pobre cabeça. No primeiro "alô" uma voz feminina dispara a fatídica pergunta sobre uma recém-postagem publicada em meu blog:  "sua narrativa é uma crônica, um manifesto, um desabafo ou uma declaração afetiva"? Respondi sem hesitar: as quatro definições são apropriadas, passe bem. Desliguei e voltei a dormir.


------------- POSTAGEM ORIGINAL-------------

Seu corpo estava lá, deslumbrante e desnudo, no modo "stand by", esperando que eu a possuísse com o mesmo amor irrisório com que havíamos nos conhecido há poucos dias. Ela era a única tola, personagem burra daquele enredo patético. Mas o jogo da sedução é uma merda, porque sempre um dos lados confunde emoção com relação. E ambas estão ligadas por uma tênue linha que divide os verdadeiros amores das paixões falsas. 

*Vivian queria minha alma mais do que simplesmente um símbolo fálico em sua vida, ela almejava minha mente, meus sonhos, meus ideários. Até esperava que fôssemos amantes eternos, nascidos de um romance shakespeariano. Balela. Tudo bobagem. Para mim os órgãos genitais eram ícones isolados, objetos no processo reprodutivo dos Homens e além do mais eu nunca tinha conhecido ou havia experimentado o sabor dos dramas de uma realidade romanceada, eurocêntrica e egocêntrica (até rima!), eternizados para sempre entre os séculos da nossa história. Eu só conhecia a palavra "gozar". Em outros desdobramentos, sinônimo de prazer desmedido.

Na minha cabeça passava o trailer de um sexozinho de fim de noite. Uma boa transa de fim de semana. Mas como certas doçuras de pessoas como ela conseguem estragar finas teias de clímax, me desinteressei quase que irredutível e imediatamente. O que mais me causa o tédio é essa coisa de apaixonar-se perdidamente dentro de uma boate onde todos procuram a mesma coisa: sexo sem compromisso.

Nesse contexto de namoricos, de idas e vindas, eu me assemelho a uma rocha. Era óbvio que não estávamos na mesma sintonia, nem falando a mesma língua. E todos sabem que casais que vivem fora do ar, em geral, terminam em guerra como todas as outras relações sociais amalucadas. Estar ali, dançando, para mim era apenas desculpa para umas cervejas e uma noite de sexo indiscriminado. Esbarrei com ela, trocamos olhares profundos e incertos. Então veio a fusão entre o corpo e o desejo, engalfinhados numa ferocidade como a de Kali e Shiva. Quando a madrugada avançou nos entregamos à devassidão e fizemos amor. Amor? Não, isso com certeza não fizemos.

Vivian tinha um olhar de menina, um olhar de quem queria descobrir um mar de emoções. Era o famoso "dia seguinte". Ela não sabia que minha personalidade era um deserto árido naquele instante. Os telefonemas fora de hora, as carências afetivas, os choros no portão da minha casa, minha mãe querendo saber quem era a garota mais triste do mundo que me esperava pacientemente todas as tardes, escondida do outro lado da rua. Era entediante. 

Nossos encontros me davam sono. E como dispensar alguém tão emotiva sem a chatice do fim de uma relação que, diga-se de passagem, nem existia? Meus queridos amigos diziam que era amor. Mas eu sabia que no fundo, ela ainda carregava o complexo de electra (ou pré-edipo) e via em mim a figura paterna que foi ausente em sua infância. E olha que tínhamos idade para sermos irmãos. Somente irmãos. Talvez eu a visse desse jeito, como uma irmã chorona e birrenta. Eu sempre fui um pouco intolerante e turrão, não achava graça em quase nada. Vivia nos botecos enchendo a cara e me metendo em confusão. Nossos mundos eram flechas atiradas em direções opostas. Quem iria acreditar que daria certo? Todos a minha volta, sem exceção. Menos eu (é claro).

Nossas pessoalidades divergiam sempre. Foram inúmeras separações e brigas. A verdadeira guerra dos sexos. Meu pai se divertia com minha desastrosa, mas famigerada vida amorosa. De cara fechada e rústica, eu tinha certeza dos laços afetivos lacônicos. Tinha raiva de ter ido à boate naquele dia e ter ficado dançando como um bobo na frente daquela maluca de sapatilha vermelha e vestido florido. Mas ela era linda. Sempre foi. As pessoas me paravam na rua e diziam que eu tinha sorte e devia aproveitar com Vivian o que a vida estava oferecendo. Nem todos os casais são felizes. Eu queria mesmo era minha vida de solteiro fanfarrão de volta, minhas efemeridades. O sexo daquele dia foi incisivo e decisivo no que se refere a ter sempre a mesma companhia, um jeito único de deitarmos na cama de casal. Ela de conchinha e eu espaçoso feito uma mula. Mas e daí? Hoje faz quinze anos que estamos casados e temos filhos lindos. No fim desse jogo amoroso ela me venceu: um feliz xeque-mate!

*Nota: Vivian é uma personagem fictícia, mas que personifica laços que me uniram à minha atual esposa, uma pessoa real. Apenas não usei o nome dela por questões éticas e processuais. Agradeço a compreensão.